terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Segunda Tradição

" SEGUNDA TRADIÇÃO "

"Somente uma autoridade preside, em última análise, ao nosso propósito comum — um Deus amantíssimo que Se manifesta em nossa consciência coletiva. Nossos líderes são apenas servidores de confiança; não têm poderes para governar."

De onde vem a direção de A. A.? Quem a dirige? Também isto constitui-se num enigma para os amigos e recém-chegados. Ao saberem que nossa Irmandade não tem um presidente com autoridade para governá-la, nem um tesoureiro que possa executar eventuais dívidas, nem uma diretoria com poderes para expulsar de seus quadros algum sócio faltoso, e que a nenhum A. A. é dado traçar ao outro uma diretriz ou exigir obediência, nossos amigos ficam boquiabertos e exclamam: "Não é possível. Deve haver algum segredo." Essas pessoas de mentalidade prática lêem a seguir a Segunda Tradição e ficam sabendo que a única autoridade em A.A. é um Deus amantíssimo, tal como se pode expressar na consciência do grupo. Cheias de dúvidas, perguntam a um membro experiente de A.A. se tal coisa realmente funciona. O membro em questão, visivelmente em seu juízo normal, irá de pronto responder: "Sim! Funciona!" Os amigos sussurrarão que lhes parece vaga, nebulosa e algo ingênua. Em seguida começarão a nos observar com olhos de especulador, a apanhar aqui e ali um fragmento da história de A. A., e logo terão em mãos um punhado de fatos incontestáveis.

O que são esses fatos relativos à vida de A. A. que nos trouxeram a este princípio aparentemente impraticável?
John Doe, um bom A. A., muda-se — digamos — para Middleton, nos Estados Unidos. Sozinho, ele julga que não poderá manter-se sóbrio, sequer vivo, se não propiciar a outros alcoólicos aquilo que tão generosamente lhe foi dado. Sente uma compulsão espiritual e ética, pois centenas de pessoas poderão estar sofrendo numa área perfeitamente dentro de seu âmbito de ação. Ademais, sente falta do seu grupo inicial. Precisa dos demais alcoólicos tanto quanto estes precisam dele. Faz visitas a sacerdotes, médicos, editores, policiais e donos de bares... resultando daí que Middleton tem agora o seu grupo e ele é o fundador.

Sendo o fundador, ele é, no início, o chefe. Quem mais poderia ser? Muito cedo, no entanto, sua suposta autoridade para dirigir tudo começa a ser repartida com os primeiros alcoólicos aos quais ajudou. Nesse instante, o benevolente ditador transformasse em presidente de um comitê constituído de amigos. Estes são a hierarquia de serviço do grupo florescente — auto-escolhidos, sem dúvida, pois não há outra maneira. Em questão de poucos meses, A. A. encontra-se em franco progresso em Middleton.

O fundador e seus amigos canalizam espiritualidade para os recém-chegados, alugam saguões, providenciam acomodações em hospitais e convocam suas esposas a fazerem café aos litros. Sendo criaturas humanas, é possível que o fundador e seus amigos se envaideçam um pouco com o sucesso. Eles comentarão entre si: "Talvez seja bom a gente trazer A. A. de rédea curta nesta cidade. Afinal de contas, temos experiência. Ademais, não foi pouco o que fizemos por todos esses beberrões. Eles deveriam ser-nos gratos!" É bem verdade que, por vezes, fundadores e seus amigos mostram-se mais sensatos e humildes do que estes. Porém, na maioria das vezes não o são nesta fase.

Dores de crescimento começam a afligir o grupo. Os mendigos pedincham. Os corações solitários começam a consumir-se. Problemas desencadeiam-se como uma avalancha. E o que é mais importante ainda, surgem comentários entre os companheiros, tendendo a converter-se em enorme grita: "Será que esses velhos julgam-se capazes de dirigir para sempre este grupo? Façamos uma eleição!" O fundador e seus amigos ficam magoados. Eles se debatem entre crises intermitentes e procuram apoio entre os companheiros do grupo. Mas tudo é inútil; a revolução está em marcha. A consciência do grupo está preste a assumir o controle da situação.

Chega por fim a eleição. Se o fundador e seus amigos tiverem tido boa atuação poderão — para sua surpresa — continuar temporariamente em seus cargos. Se, pelo contrário, tiverem resistido ao desabrochar do movimento democrático, poderão ser sumariamente afastados. Em qualquer das hipóteses, o grupo terá agora um assim chamado comitê rotativo, perfeitamente delimitado em suas atribuições. Em nenhum sentido da expressão poderão os componentes deste comitê governar ou dirigir o grupo. Eles não passam de servidores. A eles cabe o privilégio por vezes ingrato de realizar as tarefas do grupo. Chefiados pelo presidente, cuidam das relações públicas e promovem reuniões; o tesoureiro, rigorosamente fiscalizado, recolhe o dinheiro colocado numa sacola que é passada, deposita-a no banco, paga o aluguel e outras contas e faz um relatório quando das reuniões de negócios. O secretário cuida de que a literatura esteja sobre a mesa, toma conta do serviço telefônico, responde à correspondência e divulga os comunicados de novas reuniões. São esses os serviços simples que possibilitam ao grupo funcionar. O comitê não fornece orientação espiritual, não julga o procedimento de quem quer que seja, não emite ordens. Qualquer de seus componentes poderá ser imediatamente eliminado na eleição seguinte se aventurar-se a qualquer dessas coisas. Assim sendo, fará a tardia descoberta de que na verdade é um servidor e não um senador. Trata-se de experiências universais. Por esse modo, em toda a história de A. A., a consciência do grupo decreta os termos segundo os quais seus líderes devem servir.

Isto leva diretamente à pergunta: "Terá A. A. uma verdadeira liderança?" A resposta é um enfático "sim, não obstante a aparente ausência desta." Voltemos ao deposto fundador e seus amigos. Que lhes acontece? Quando a dor e a ansiedade que os acometeram desaparecem, uma mudança sutil começa a operar-se. Em última instância divide-se em duas classes, que no jargão de A. A. são conhecidas por "velhos mentores" e "velhos resmungões". O velho mentor é aquele que vê a sabedoria das decisões do grupo, que não se ressente da diminuição do seu status, aquele cujo julgamento, revigorado por grande dose de experiência, é justo, e que consente de bom grado em ficar à margem e observar a evolução dos acontecimentos. O "velho resmungão" é alguém portador da convicção de que o grupo não pode subsistir sem ele, alguém sempre metido em conluios destinados a guindá-lo de volta a um posto de relevo, alguém que continua a consumir-se eternamente na chama da autopiedade. Alguns dentre estes se esvaem de tal forma que — esvaziados de todos os princípios e de todo o espírito de A. A. — se embebedam. Por vezes a paisagem de A. A. parece completamente juncada de formas "sofredoras". Quase todos os antigos membros da nossa Irmandade experimentaram em maior ou menor grau esse processo. Felizmente, a maior parte deles consegue sobreviver e chega a transformar-se em velhos mentores. Estes são a liderança real e permanente de A. A. Sua opinião tranquila, seus conhecimentos seguros e seus exemplos de humildade resolvem qualquer crise. Sempre que o grupo se acha aturdido, recorre inevitavelmente aos seus conselhos. Eles transformam-se na voz da consciência do grupo; na verdade, constituem-se na verdadeira voz dos Alcoólicos Anônimos. Eles não dirigem com imposições; lideram pelo exemplo. Esta é a experiência que nos levou à conclusão de que nossa consciência de grupo, bem aconselhada pelos mais velhos, mostrar-se-á a longo prazo mais sábia do que qualquer líder individual.

Quando A. A. tinha apenas três anos de existência, aconteceu algo que veio demonstrar o princípio. Um dos primeiros membros de A.A., em completo desacordo com os seus desejos, viu-se obrigado a submeter-se à opinião do grupo. Eis a história em suas próprias palavras.

"Eu fazia certo dia um serviço de Décimo Segundo Passo num hospital de Nova York". O proprietário, Charlie, convocou-me ao seu escritório. 'Bill', disse-me ele, 'acho uma pena você estar em tamanhas dificuldades financeiras. Por toda a parte os beberrões estão sarando e ganhando bastante dinheiro. Mas você tem dedicado tempo integral a este trabalho e está apertadíssimo. Não é justo'. Charlie remexeu na sua escrivaninha e sacou um velho relatório financeiro. Entregando-me o papel, prosseguiu: 'Isto mostra os lucros do hospital na década de vinte. Milhares de dólares por mês. As coisas deveriam estar no mesmo pé agora, e estariam, se você ajudasse. Por que não transfere o seu trabalho para cá? Eu lhe darei um escritório, uma boa retirada e uma generosa parcela dos lucros. Há três anos, quando o meu médico-chefe, Silkworth, me falou da idéia de ajudar os bêbados por meio da espiritualidade, pensei que ele estivesse maluco, mas mudei de opinião. Algum dia esse seu bando de ex-beberrões ainda encherá Madison Square Garden e não vejo porque você deva morrer de fome enquanto isso não acontece. Minha proposta é perfeitamente válida do ponto de vista da ética. Você pode transformar-se num terapeuta leigo e terá maior sucesso do que qualquer outro. '

Fiquei desconcertado. A consciência picou-me algumas vezes antes de eu perceber que era mesmo ética a sugestão de Charlie. Não havia nada de censurável em tornar-me terapeuta leigo. Pensei em Lois, que todos os dias voltava da loja exausta a fim de preparar o jantar para um punhado de bêbados que nem sequer pagavam o aluguel. Pensei na gorda quantia que ainda devia aos meus credores de Wall Street. Pensei nos tantos amigos alcoólicos que andavam ganhando mais dinheiro do que nunca. Por que não haveria eu de ganhar tanto quanto eles?

Embora tenha pedido a Charlie um pouco de tempo para pensar, eu já me havia resolvido. Voltando ao Brooklin pelo metrô, pareceu-me ver um lampejo da Divina Providência. Foi só uma frase, porém, das mais convincentes. Na realidade, ela veio diretamente da Bíblia — uma voz não parava de me dizer: 'O trabalhador faz jus ao seu salário'. Chegando à casa, encontrei Lois empenhada na cozinha como de hábito, enquanto, da porta, três bêbados espichavam gulosamente o olhar. Chamei-a de lado e comuniquei-lhe as boas novas. Ela pareceu interessada, mas menos entusiasmada do que eu imaginara.

Era um dia de reunião. Embora nenhum dos bêbados que hospedávamos parecesse estar sóbrio, alguns de fora estavam. Com suas esposas, encheram a sala de estar no andar de baixo. De supetão ataquei a história da minha oportunidade. Jamais esquecerei aqueles rostos impassíveis e os olhares firmes fixados em mim. Meu relato esmoreceu até chegar a um final melancólico. Seguiu-se um longo silêncio.

Quase com timidez, um dos meus amigos começou a falar: 'Sabemos das suas dificuldades financeiras, Bill. Incomoda-nos bastante. Mas creio falar por todos os presentes ao dizer que a sua presente proposta nos incomoda ainda mais. ' A voz do orador ganhou confiança. 'Não percebe que você jamais poderá se transformar num profissional? Por mais generoso que Charlie tenha sido, não vê que o assunto não pode ser ligado ao hospital dele ou a qualquer outro? Você nos diz que a sugestão de Charlie é válida do ponto de vista da ética. Sem dúvida é, mas o que temos não depende apenas de ética; tem que ser mais do que isso. Claro que a idéia de Charlie é boa, mas não é suficientemente boa. Trata-se de uma questão de vida ou de morte, Bill, e apenas o melhor do melhor servirá!' Os meus amigos puseram-se a olhar para mim com ar de desafio à medida que o seu porta-voz falava. 'Bill, você já não disse repetidas vezes, nesta mesma reunião, que às vezes o bom é o grande inimigo do melhor? Pois bem, o caso agora é bem esse. Você não nos pode fazer isso!'

Assim falou a consciência do grupo. O grupo tinha razão e eu não; a voz no metrô não era a voz de Deus. Aqui estava a verdadeira voz, saindo de dentro dos meus amigos. "Eu ouvi, e — graças a Deus — obedeci.

* Fonte: Livro Os Doze Passos e as Doze Tradições

Nenhum comentário:

Postar um comentário