quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Da Humildade à Humanidade


Da Humildade à Humanidade
Dr. Francisco C. Rodrigues
(Professor de Neurofisiologia - UFRN-CB-DFS -Natal/RN)

"O homem, ao reconhecer sua impotência frente ao álcool, quebra o instinto animal egoísta e prepotente que o motivava enquanto animal"

No início éramos o todo. Ao nascer não conseguíamos distinguir nosso corpo do resto do mundo. Ao mover um membro ou qualquer porção do corpo era como tudo o mais também se movimentasse. À medida que crescemos, vamos tomando consciência da nossa estrutura e aos dois ou três anos já sabemos que temos um corpo dissociado do resto do universo. Porém, ainda temos a percepção que o resto do mundo está aí para nos servir. São os anos do egoísmo, da onipotência, do egocentrismo. A partir daí o processo educativo deverá ir lapidando essa natureza, essencialmente animal e aproximar o homem dos princípios espirituais alavancados na prática do amor, até sua condição humana propriamente dita (quando os instintos animais estão submetidos à vontade moral e ética do homem).
No entanto, nosso processo educativo ainda é extremamente falho na preparação espiritual do homem e, em paises sub-desenvolvidos (e dependentes) como o nosso, até mesmo essa educação tradicional encontra-se esfacelada. A consequência disso é a formação do homem
com seus instintos animais bastante ativos. A prepotência e o egoismo como padrões comportamentais gerais são algumas vezes disfarçados pela etiquetagem social, a qual não consegue ocultar os resultados nefastos e milenares: fome, guerra, drogadição, prostituição, corrupção ... misérias de todas as formas.
Não adianta o nosso nível científico e tecnológico: a miséria humana está à nossa frente, ao nosso lado, nas ruas, às vezes em nossas casas.
Estamos dentro de um círculo vicioso, onde a sociedade de homens-animais não consegue construir a sociedade de homens-humanos, pois isso vai de encontro à sua natureza animal. Portanto, o processo educativo atual reforça as diferenças, aprofundando a miséria da condição humana dos dois lados: a miséria das ruas, da fome e a miséria do acúmulo vergonhoso de capital feito de forma legal ou ilegal. Temos de encontrar uma forma eficaz de conduzir o homem à sua destinação humana, espiritual, no meio de toda essa miséria. E o sofrimento surgido de uma das sequelas da miséria humana que acomete qualquer lado social, a dependência química, parece apontar o caminho. O homem tragado pelo redemoinho do alcoolismo, devasta sua vida biológica, mental e social, e caminha inexoravelmente para a morte, apesar de todos os recursos científicos e tecnológicos colocados à sua disposição. Somente ao perceber sua fragilidade, reconhecer sua
importância frente às circunstâncias, paradoxalmente, começa sua libertação. Paradoxalmente de um ponto de vista material, natural. O homem, ao reconhecer sua
impotência frente ao álcool, quebra o instinto animal egoísta e prepotente que o motivava enquanto animal e exibe a humildade que caracteriza àqueles que trilham no caminho espiritual. Então, com essa visão, não há paradoxo. O homem começou uma mudança de rumo, deixou de caminhar na vereda animal que o levaria ao fundo da degradação e passou a trilhar o caminho humano, da espiritualidade que somente nós, enquanto espécie,
podemos exercer. Não importa o quão fundo ele já estava! No momento em que toma essa consciência, ele inicia sua jornada para o alto.
Daí a importância do Primeiro Passo em Alcoólicos Anônimos:
"Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas". É o primeiro passo na recuperação, não só do doente alcoolista, mas do homem perdido na miséria de sua condição animal. Daí porque o membro de Alcoólicos
Anônimos tem uma dignidade, postura e ações que reacendem a confiança no ser humano. E deixa essa orientação como recurso para todos nós que ainda somos egoístas e prepotentes, apesar de não sermos alcoólicos. A humildade é o primeiro passo no caminho
para a humanidade.

Revista Vivência N.º 44 – Nov./Dez. 96

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