quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O A.A. não muda, mas muda

O A.A. NÃO MUDA, MAS MUDA

Dr. Lais Marques da Silva, ex-Presidente da JUNAAB
Tema apresentado nas comemorações dos 50 Anos de A.A. em Minas Gerais
Juiz de Fora, MG em 10, 11 e 12 de junho de 2011
Texto básico da palestra

As pessoas têm necessidade de dispor de referenciais que sejam estáveis, imutáveis e disponíveis para viver e sobreviver, especialmente aqueles que foram batidos pelo demônio do alcoolismo.
Dá bem uma ideia do problema, a imagem do náufrago comparada com os fatos da vida do dia a dia de um alcoólico. De um lado as ondas e, do outro, a necessidade de continuar respirando, mas estando sempre presente a sensação de que se vai morrer a qualquer instante. Surge então um tronco de árvore flutuando e o náufrago agarra-o fortemente e a água não mais cobre a cabeça, não obstante o fato de que as ondas não cessem. O tronco torna-se indispensável à sobrevivência porque, agarrado a ele, o náufrago não afunda mais e a água não cobre a sua cabeça.
Há uns anos, procurava-se, no antigo CLAAB, a cada nova edição de uma publicação de A.A., fazer uma revisão de todo o material que fosse para uma nova reimpressão. Foi aí que se observou que no livro Os Doze Passos, além de várias correções, era necessário traduzir e inserir toda uma folha que estava faltando. Quando a nova edição foi distribuída, o ESG recebeu um grande número de reclamações vindas de todo o país. É que os companheiros tinham de cor até mesmo a última palavra de cada página, tal a necessidade de se “agarrar ao tronco”, e observaram que elas não eram mais as mesmas. Reclamaram que estavam “mudando o A.A.” e protestaram veementemente. Essa reação é compreensível pois que estavam abraçados firmemente no conteúdo de cada página de uma publicação que era indispensável para se manterem sóbrios e poderem continuar sobrevivendo ao alcoolismo. Precisavam continuar não sendo ameaçados de afundar a qualquer momento. Já viviam uma vida em que as ondas existiam no mar da vida mas a cabeça era mantida fora da água e a sobrevivência estava assegurada.
Participei da 12ª Reunião Mundial, em Nova Yorque, e troquei muitas ideias e experiências nos corredores. Usei o meu espanhol e o meu francês e, sobretudo, a prática que tenho do inglês por ter feito nos EEUU um curso de pós-graduação. Pude constatar, em conversas de corredor com delegados de mais de 40 países, que os princípios de A.A. eram mantidos inalterados em seus países. Eu tinha esta curiosidade por causa de uma experiência traumática sofrida em uma Conferência de Serviços Gerais em que, por pouco, não alteraram um Conceito de Serviço. Posteriormente, mantive contatos com companheiros do GSO, por algum tempo, especialmente com o Danny Mooney e tive a informação de que os princípios permaneciam inalterados em toda a irmandade a nível mundial. O “tronco” ainda estava lá, salvando vidas.
A custódia guarda o sagrado e uma das funções dos custódios da junta é guardar o “sagrado” da Irmandade. O custódio encarna a figura do “patriarca”, garantidor das tradições, do passado, daquilo que é imutável, do que é pétreo. Guarda a memória do passado. Portanto, o A.A. não muda.
Mas o A.A. deve continuar vivo e atuante, e o que não se adapta às condições do seu ambiente, tende a desaparecer, pode virar dinossauro, espécie extinta, virar fóssil. As tecnologias surgem e a vida dos homens se modifica em função delas. As circunstâncias que nos cercam mudam e as necessidades se renovam. Tudo na vida é marcado pela mudança e a solução é mudar e se adaptar à realidade cambiante. A cada ano isso acontece no decurso das Conferências de Serviços Gerais. Nelas vemos os custódios no papel conservador de “patriarca”, a conservar o tesouro recebido e a olhar para o passado. Mas lá estão também os “pioneiros”, os delegados a mirar para o futuro. As Comissões da Conferência analisam centenas de sugestões vindas de todo o país e os delegados trabalham no estudo desse material. Para resistir ao tempo e se ajustar à realidade cambiante e às necessidades identificadas pelos grupos de todo o país, as recomendações são elaboradas e enviadas a todos os grupos, em retorno. Por meio desse mecanismo, o A.A. muda, adapta-se às realidades do momento mas não muda no que é pétreo, definitivo, nos seus princípios. As sugestões dos grupos de cada Área, fruto da convivência do dia a dia, além de muitas outras, são estudadas pelas Comissões, ponderadas em todos os detalhes e consideradas as repercussões que possam gerar. Tudo isso se constitui num trabalho de maturação que resultará nas recomendações.
O caminho em A.A. vai sendo feito ao longo do tempo e ao caminhar. Nada está pronto, apesar do muito que vem sendo desenvolvido ao longo de 76 anos de vida da Irmandade. A realidade se impõe e a adaptação a ela é um processo sábio. O solo é pedregoso, não existem trilhas, não existem indicações nem sinalizações. Há sempre perigos à frente, mas o caminho tem que ser encontrado e é feito ao caminhar. Cada passo que se dá deve conduzir ao destino grandioso da Irmandade e, portanto, não pode comprometer o futuro, e o bem estar de todos deve estar em primeiro lugar. O problema está sempre no próximo movimento que se vai fazer e é preciso contar com o Poder Superior para iluminar o caminho, para iluminar esse primeiro passo, embora não necessariamente todo o caminho. O importante é sempre o próximo passo que se vai dar.
Aí está o instante crítico, o momento do próximo passo. Mas podemos recorrer a um contato precioso que todos os homens, por todo o sempre, procuraram e ainda não encontraram mas que a Segunda Tradição nos mostra. É que o Poder Superior se manifesta por meio da Consciência Coletiva. É então necessário criar condições para receber a inspiração, a Graça. É escutar essa comunicação que é real. Aí está a solução para abrir caminhos seguros e que não comprometam o futuro da irmandade. Ela deve continuar como uma via de crescimento espiritual, de libertação, de transformação e de realização plena de cada alcoólico.
Como a estrutura de A.A. é celular, pois os grupos são autossuficientes, todas as decisões são tomadas pelos seus membros num processo que admite que a verdade está um pouco em cada um de seus membros. Que ela não é pessoal, mas interpessoal. Portanto, do somatório das experiências e conhecimentos de cada um em relação a um assunto que está sendo analisado. É no relacionamento respeitoso e no reconhecimento do valor de cada um que o processo evolui. Na aceitação das diferenças é que se desenvolve a busca da Consciência Coletiva, guia seguro para a tomada de decisões.
Está escrito que Ele está no meio de nós, como que espalhado como canela salpicada em arroz doce. Em realidade, a tradução certa é que ele está entre nós, isto é, na inter-relação de irmãos, na qualidade dos nossos relacionamentos, na nossa humanidade. Na troca enriquecedora de interiores. No encontrar caminhos difíceis que ficam mais fáceis quando o fazemos na companhia de irmãos, quando os aceitamos e respeitamos, quando aceitamos as nossas diferenças, sempre benvindas, e que nos enriquecem. As abelhas fazem um trabalho admirável, mas que é o mesmos após milênios. Não evoluem. Não são estimuladas pelas diferenças. Está tudo arrumado e paralisado, não há evolução.
Quando, em uma reunião de Serviço, ou diante da tomada de qualquer decisão, procuramos a substancial unanimidade, isso significa que estamos buscando inspiração num processo de troca de interiores, buscando a Consciência Coletiva.

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