
A Reparação era para mim ?
A Reparação era para mim ?
Para este alcoólico, fazer reparações pelos danos causados era uma limpeza necessária.
No começo de minha sobriedade, durante aqueles primeiros doloridos e quase insanos meses - até mesmo anos - freqüentando a Irmandade e conseguindo chegar a um acordo com a minha irrascível e crônica personalidade alcoólica, existia pendurado, atrás da porta da sala de minha casa, um grande sobretudo preto onde estava escrita a palavra "culpa". Sempre que eu chegava em casa, tirava aquele casaco do cabide e o vestia. Da forma como ele se amoldava perfeitamente em mim, não podia haver dúvida alguma sobre a quem ele pertencia. Eu me sentia perdido sem ele.
Mesmo hoje, depois de tantos anos, eu não estou absolutamente certo sobre quem teria sido o primeiro a pendurá-lo ali. Se foi a minha própria culpa, mais o remorso pela minha arrogante existência alcoólica ou, talvez, a total falta de respeito de minha família por um marido e pai que sempre quebrava toda e qualquer promessa que fizesse. Provavelmente, foi uma combinação das duas coisas.
Ficar sóbrio era como despertar de um frenético pesadelo sem fim e ao acordar ver no pesadelo a realidade. Aqueles vinte e cinco anos de bebedeiras, de mentiras, de fraudes, de infidelidade e promessas quebradas, causaram um incalculável desgosto àqueles que na época eu dizia amar. "Perdoe-me", era, de pronto, a palavra que eu mais usava (e abusava) do meu novo vocabulário de A.A.
Os "Doze Passos", no que se refere ao Nono Passo, sugere: "Bom senso, um cuidadoso sentido de escolha do momento, coragem e prudência." Nenhuma dessas qualidades era particularmente alta no que concerne à minha lista de habilidades. Como poderia existir coragem e prudência, estando eu como quem tivesse sido atingido por um furacão duplo? A reação imediata foi o pânico; foi sair imediatamente fazendo toda e qualquer reparação que me fosse possível, sem mesmo compreender o significado da palavra reparação. Estava, eternamente, em busca de reafirmação. "Diga-me que eu estou bem, que você não vai me botar pra fora; que você ainda me ama."
Lembram-se daquela velha canção que diz "os tolos enveredam por trilhas onde até os anjos temem pisar"? Na época, essas palavras poderiam ter sido escritas exatamente para mim. Absolutamente não havia nem bom senso, tampouco momento propício, naqueles primeiros meses.
Convencido de que me seria mostrado o caminho da porta, transformaram-me no velho alcoólico em recuperação, pálido e maltrapilho, ansioso por apanhar aquele sobretudo da culpa... mesmo, às vezes, quando não era a minha vez de vestir aquela coisa desprezível.
O tempo era o ingrediente necessário se eu quisesse fazer minhas reparações de uma maneira honesta. Tempo, para eu poder levantar minha cabeça, para compreender o que honestidade realmente significa para deixar de lado o orgulho e pedir socorro ao meu padrinho, para começar a trabalhar o programa com o melhor das minhas habilidades.
Com certeza, eu não tinha mais dúvidas sobre o porquê dos Doze Passos terem sido escritos na ordem em que se encontram. Toda uma vida alcoólica, enganando a mim mesmo, achando que tal conduta desonesta era o padrão, tinha que ser adequadamente compreendida à luz do Quarto e do Quinto Passos, antes que eu tivesse pronto para fazer qualquer reparação. Quem eu havia machucado? A família, sem dúvida. Ela, talvez, mais do que ninguém. Também pessoas relacionadas aos negócios (naqueles anos eu ainda era capaz de trabalhar). Vizinhos, é claro. Quantas vezes eu, cambaleante, ficava gritando ofensas diante de suas janelas? A amável japonezinha que dirigia a loja da esquina a quem xinguei por ter recusado me vender fiado uma garrafa. A mulher que deu à luz meu filho ilegítimo - esta, talvez a mais grave de todas. E que dizer daqueles credores todos, a quem eu fazia questão de evitar?
Vieram-me à lembrança os fatos daquele tempo, quando ouvi em uma reunião de A.A. o orador falar sobre ressarcir todas as dívidas em dinheiro, não algumas. Aquele orador, naquele momento, me deixou em pânico; porém, mais tarde, tornou-se um bom e fiel amigo.
Havia, naturalmente, alguns dos quais me era impossível fazer qualquer tipo de reparação. Alguns que morreram nos anos subseqüentes; outros, inquestionavelmente se enquadravam no "salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las ou a outrem". Mas mesmo aqui, ou talvez, principalmente aqui, conhecendo aquela minha velha propensão à autodecepção e procrastinação, eu precisava averiguar duplamente o que deveria fazer. É muito simples decidir que "fazer reparações vai machucá-los", quando na verdade o que estou querendo é achar uma maneira mais fácil.
E com relação a todas as minhas dívidas de dinheiro? Na época em que comecei na Irmandade, eu estava falido e desempregado (e não empregável). Como me seria possível, de alguma forma, pagar tanto, se tudo o que minha família tinha era um auxílio-doença semanal?
Foi então que me mostraram que o Oitavo Passo diz nesse caso: "Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados." Vontade, foi-me dito, era a chave desse Passo, bem como dos demais. A coisa mais extraordinária foi que com o passar dos anos, em determinadas circunstâncias, quando aparecia a ocasião propícia, eu estava sendo capaz de converter a vontade em ação.
Livrar a mim mesmo dos fantasmas, aqueles fantasmas que por tantos anos estiveram estimulando minhas bebedeiras foi, talvez, mais do que qualquer outra coisa, fundamental.
Ainda hoje percebo um certo burburinho quando entro em meu banco e ouço o caixa dizer: "Bom dia, Sr. J!" Muito diferente do que acontecia antes.
Logo que entrei na Irmandade, ensinaram-me que a melhor reparação de danos que eu poderia fazer era ser visto sóbrio. Era ser, hoje, conhecido como homem honesto e de confiança. Retribuir com um pouco de sobriedade que naqueles meus primeiros meses e anos foi-me dada com tanta boa vontade pelos membros dessa Irmandade. Que fazer reparações não era tão somente uma questão de dizer "sinto muito" (a maioria de nós é muito hábil em fazer isso), mas, sim, agir agir através do meu próprio modo novo de proceder. Que prestar serviços em A.A. era também uma forma fundamental para se fazer reparações.
E aquele casaco de culpa pendurado atrás da porta de entrada da minha casa? Eu o usei por muitos anos, algo parecido como usar aquela velha jaqueta surrada, de estimação, que a gente veste por muitos anos, mesmo com os cotovelos esgarçados e o colarinho esfiapado. Vesti-lo tornara-se um hábito, até que um sábio companheiro veio e gentilmente tirou-o de mim. "Se Deus te perdoou, não acha que está na hora de você perdoar a si próprio?", perguntou ele, "pois você já fez as reparações para consigo mesmo?"
(anônimo)
(Compartilhando a Sobriedade)
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