quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Ouvir os outros

“OUVIR OS OUTROS”: RELACIONAMENTO, PLENITUDE, “CURA”!
Laurence Freeman
Monge Beneditino
Diretor da Comunidade Mundial de Meditação Cristâ

“A confiança amorosa entre os membros de A.A. é expressa na escuta paciente, de coração aberto e sem julgamento”.

Nós não somos curados para que possamos apenas continuar a viver e procurar outros deuses falsos que nos levarão ao mesmo problema anterior.
Esta atitude de fim de linha levou em tempos modernos ao abandono geral do ritual importante da cura chamado, na tradição católica, de sacramento da reconciliação ou confissão.
Para muitos hoje e recordo quando fui a ele introduzido, pode às vezes parecer uma forma sutil de compulsão religiosa. Havia um caratê mecânico mais do que orgânico no ritual e, assim nunca podia conduzir à única experiência que realmente nos muda para melhor: o autoconhecimento. Assim como acontece com o vício, uma espécie de jogo mental tinha que se instalar para manter a ilusão. Quando o jogo é finalmente exposto, dependência tem que sucumbir porque todo vício é uma tentativa enganosa de cura.
A verdade então surge e, quando ela é encontrada e sentida, e não apenas pré-arranjada ou alimentada à força, ela nos liberta.
Em anos recentes, o uso agora proibido de serviços de penitência com necessidade terapêutica profunda das pessoas ao expressar uma compreensão mais saudável do significado de pecado e perdão. O contexto de grupo comum para este poderoso sacramento entrou em conflito com o que muitos sentiam como culpa privativa e isolada, dependente de escuro confessionário. O serviço de penitência comum não negou a necessidade da dimensão individual, mas permitiu que a experiência de cura fosse sentida primeiro em comunidade.
O mero indivíduo precisa ser transformado primeiro pela comunidade numa autêntica pessoa antes que aconteça a cura.
A verdade vem pela via do paradoxo. É um paradoxo que vale a pena explorar que o famoso “anônimo” dos A.A. crie uma tão poderosa solidariedade redentora, enquanto o formalismo institucional de tanto serviço de Igreja e vida sacramental afugenta pessoas que buscam uma comunidade, para longe de seu ritual sagrado e mítico.
Mitos são as estórias que dizem a verdade de forma mais completa do que palavras comuns podem fazer. Mas os mitos fazem sentido apenas no contexto do ritual. Sem ritual, eles são como peixe numa tábua de peixaria. Transformam-se em “meros mitos” no sentido derrogatório que têm hoje para a maioria. Porém, rituais podem proporcionar o contexto certo para o mito apenas se atenderem às necessidades mais profundas das pessoas que tomam parte, tal como nossa necessidade simultânea hoje de comunidade e de contemplação.
Um ritual que se esvaziou em obrigação legal ou repetição monótona e desmotivada morre e leva o poder do mito com ele para o cemitério da história. Em comunidade, somos curados da doença do isolamento que é em si mesma, um sintoma de ilusão. O provado ‘efeito placebo’ em pesquisa médica é com freqüência deixado de lado pelos que praticam o modelo biomédico de cura. Ainda assim, tal modelo reconhece que a mente é um parceiro maior na cura da doença física. Atingida ao dispensar a ilusão, quanto mais não será nossa experiência total da verdade fator importante da saúde plena que é o verdadeiro significado da palavra ‘santidade’. Se aceitarmos uma apreciação holística da cura e perceber a cura não apenas como um meio para um fim determinado, mas como esse próprio fim, estaremos melhor posicionados para a revelação da verdade. Estaremos mais aptos a verdadeiramente conhecer Deus do que nos arvorar em falar por Ele.
Essa foi a conversão radical de São Paulo, depois de se comportar como um repulsivo fundamentalista fanático perseguindo a nova seita de cristãos, ele não se transformou apenas em mais um deles, não substituiu uma compulsão fundamentalista por outra. Pelo contrário, ele deu início a uma partida inteiramente nova, a viagem para o ‘oikumene’ de Deus. Assim, o pecado para ele, não significou mais a quebra de códigos de pureza culposa ou a correção de rituais. Era o estado do ser dividido. Ele agora viu que essa divisão explica toda falta de amor porque cria uma disfunção radical dentro da capacidade humana essencial de amar. Paulo dedicou-se a construir e sustentar a única comunidade humana de igrejas locais em que a cura do espírito pudesse funcionar melhor. Mas, assim como acontece com qualquer cristão que realmente ouve as palavras de Jesus, ele também abriu uma perspectiva maior, uma compreensão mais universal de
relacionamento.
ATENÇÃO E INTENÇÃO
Todo relacionamento, assim como cada ação ou pensamento é significativo. Ou é para curar ou será destrutivo.
Nenhum relacionamento pode ser desprezado apenas porque a pessoa não parece fazer parte de meu mundo imediato ou não é bastante importante para meus objetivos. Ignorar outra pessoa é feri-la além de incapacitar a nós mesmos no caminho da plenitude ao sucumbir na ilusão da separação.
Ouvir os outros – esta escuta é a dinâmica de cura do grupo dos Alcoólicos Anônimos – é prestar atenção a eles; e o ato de prestar atenção é um ato amoroso. A confiança amorosa entre os membros é expressa na escuta paciente, de coração aberto e sem julgamento.
Quando sentimos que somos ouvidos dessa maneira, podemos falar sem medo.
Faz diferença para todos os envolvidos no ato e essa diferença é a cura.

Vivência nº105 – Janeiro/Fevereiro/2007.

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