sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Lições de vida de A.A.

LIÇÕES DE VIDA DE A.A.

"Ali dentro não há credos, raças ou qualquer tipo de hierarquia. Há seres humanos comunicando-se através da linguagem da alma!

E isso que os toma únicos e universais!"

Decidi ir à uma reunião dos Alcoólicos Anônimos – A.A., com a finalidade de conhecer seus famosos feitos e checar, por conta própria, a veracidade de sua fama.

Antes de vir a conhecer a estrutura dessa entidade e sua filosofia, eu tinha a impressão de que algo estranho havia nas histórias que me contavam. Quer fosse o conhecimento através dos jornais, revistas e outros veículos de comunicação, imaginava existir um cunho ideológico meio que camuflado, meio que embutido nos supostos discursos elaborados pelos pretensos oradores.

Fazia idéia de que esses oradores deveriam ser, assim como tantos outros proclamadores da fé, excêntricos religiosos, representantes da falsa moral... Imaginava que os Alcoólicos Anônimos fossem mais uma fachada de alguma coisa não salutar, uma fonte de dinheiro mantida às custas dos mais necessitados, dos devotos da fé, enfim, do mais humilde ser humano!

Pensava, por isso tudo, que essa entidade dedicada a ajudar pessoas com problemas com bebidas alcoólicas, na verdade tinha fama de haver dado certo e conseguir atrair mais gente para suas fileiras porque realizava nessas pobres almas, a famigerada lavagem cerebral. Sim, a única explicação cabível, pensava eu, era essa! Atraíam pessoas emocionalmente debilitadas pela bebida e enchiam-nas com suas frases de efeito. A pessoa fragilizada está suscetível a se converter em abnegado, quiçá, de seus próprios pensamentos!

Era assim que tudo acontecia, pensava eu, descrente inclusive e até mesmo, de ser o alcoolismo, uma doença!

E lá fui eu conhecer, de perto, o que é essa instituição chamada Alcoólicos Anônimos.

Era terça-feira, fazia frio, o local da reunião era próximo de minha casa. Fui a pé! Lá estavam todos, sentados. Além de mim havia mais uma mulher e os demais eram todos homens.

A ocupação desse espaço é gratuita. Descobri que não há mensalidades ou qualquer tipo de contribuição financeira para o A.A. daí o motivo para ocupação daquele espaço. Não seria pelo caráter religioso como a princípio imaginei ser, mas sim por sua gratuidade.

A média etária beirava 45 anos e os mais velhos somavam a maioria. Porém, lá estavam jovens adolescentes e outros tão jovens... Um de cada vez e a cada um é dado o direito ao uso da palavra. A pessoa é livre para falar o que bem desejar!

Um senhor de 60 anos talvez, por causa da bebida perdeu o emprego. Mais de 30 anos de trabalho jogados fora. Um bom emprego, daqueles que não se encontram mais hoje em dia, na chamada era da globalização, onde os valores humanos são dia pós dia esquecidos; as privatizações das estatais são mais uma medida dentre outras que terminam por cerrar portas e perspectivas àqueles que buscam um lugar ao sol.

A bebida dá ilusão de poder! Encontrar um emprego: uma em mil chances aqui por estes pagos! Aturdido lá estava ele na reunião dos Alcoólicos Anônimos, tentando vencer mais um "round" na sua luta contra o álcool. Suas palavras traziam o gosto amargo do abandono! Suas mãos trêmulas, a pele curtida pelo sol e pelo sal do mar! Em pé ele fala das perdas que houve, da mulher que partiu, da filha que se foi e das economias que já não existem mais.

Eu ouvia aquele som angustiante de sua voz e fiquei completamente envolvida com sua tristeza. Contou que por toda a vida teve a certeza de que tinha o domínio sobre a bebida e que levou 40 anos para perceber que a bebida é que o dominava!

Fui ficando cada vez mais absorta com as histórias relatadas por cada ser humano que lá se expunha.

Eram na maioria pessoas humildes, de baixa renda familiar e que ao deixarem aquela reunião, teriam, ainda, de atravessar o oceano, em direção à Santa Cruz dos Navegantes, para poderem deitar seus corpos, cansados, de mais um dia de trabalho!

Senti-me envergonhada por imaginar tanta ignorância com relação àquelas, aparentemente, frágeis criaturas. Quando cheguei ao salão, era inicio de reunião, a única mulher do local levantou¬se e veio em minha direção; sorriu-me um sorriso afável e apontou-me uma cadeira onde pude aconchegar-me. Mais tarde, ela me serviu um pequeno copo com café oferecendo aos demais participantes também. Era noite, havia uma neblina fina e gelada, todos deveriam estar exaustos do trabalho durante o dia e um café quente cairia bem para que não fraquejassem de suas intenções, permanecendo todos, até o final da reunião.

Através dos relatos, pude perceber que cada um ali tinha um jeito próprio de enfrentar a bebida. São conscientes do problema! Há aqueles que não entendem o funcionamento dessa doença chamada alcoolismo, portanto, não conseguem dominá-la. Outros simplesmente não aceitam a idéia do alcoolismo ser uma doença.

A sociedade não reconhece o alcoolismo como doença. O resultado disso é a não existência de centros de recuperação financiados pelo governo, onde o alcoólatra poderia se tratar, gratuitamente! Ponto para os Alcoólicos Anônimos!

Os amigos, muitas vezes a própria família, a sociedade acusam o alcoólatra de ser vagabundo! À parte essa ignorância toda impregnada no seio dessa nossa sociedade já ultrapassada de bons valores, o fato é que o alcoólatra possui, como a própria essência dessa doença, o poder da destruição!

Famílias inteiras são desfeitas por causa do alcoolismo! Não sobra espaço para um suspiro, sequer! Nenhum ombro amigo por perto! E por não compreenderem o alcoolismo como uma doença ficam todos perdidos numa redoma mundial que leva milhares de pessoas, diariamente, ao desespero, à aniquilação da personalidade, da dignidade e por fim, da própria vida!

Importante deixar claro que o alcoolismo não tem cura; a cura para o alcoólico é não beber!

O alcoólico é suscetível ao álcool e, exatamente por isso, ele sempre precisará de pessoas por perto, capazes de entendê¬lo e ajudá-lo! A ajuda mútua é a razão de uma pessoa freqüentar as reuniões dos A.A. por mais de 20 anos e até muito mais que isso. É durante a reunião dos Alcoólicos Anônimos que acontece um trabalho devastador na alma do indivíduo, em que cada qual reconhece a si mesmo, cada qual se descobre por si e para si! São descobertas difíceis...

Imagine um universo onde não há igualdade social, semelhança cultural, racial, religiosa, e mesmo assim, todos conseguem falar uma mesma linguagem, portanto, capazes de se comunicar!

Ali dentro não há credos, raças ou qualquer tipo de hierarquia. Há seres humanos comunicando-se através da linguagem da alma! É isso que os toma únicos e universais!

Buscam o caminho da vida! São pescadores, desempregados, engenheiros, professores, mas no momento em que se reúnem, são eternos, divinos e, sobretudo, humanos!

Há uma entrega total de suas consciências, de suas mentes, de seus corações, de seus lamentos, de suas alegrias, de suas almas, enfim, de suas vidas!

Naquele lugar não existe inimigo ou amigo! Existe gente!

Não existe pobre ou rico, preto ou branco, tampouco credos! Existem pessoas atormentadas pelo mesmo problema e que sozinhas, são incapazes de se ajudar!

Há uma honestidade única de todos para com todos! E é essa comovente honestidade emanada de suas almas que faz com que seja preservado o anonimato!

Impossível trair um alcoólico anônimo! É como trair a confiança de alguém que confessa aquilo que de mais importante carregou, em segredo, a vida toda!

Impossível tomar atitudes assim diante da coragem e da honestidade de um homem ao admitir suas fraquezas piores, mais árduas de serem reconhecidas, mais terríveis de serem enxergadas, mais temidas por ele mesmo!

O anonimato é a garantia daquelas pessoas para que possam ser elas mesmas, sem que se sintam repreendidas, julgadas, sem que se sintam ameaçadas e envergonhadas!

O anonimato é a força motora para tudo girar! Não há espaço para mentiras, não existem meias palavras.

Aprendi nas reuniões dos Alcoólicos Anônimos, quando lá estive para realizar esta reportagem, que a bebida pode vir a ser um hábito, imperceptível, que aos poucos vai degenerando a qualidade humana.

Aprendi que o beber compulsivamente não é lenda, é real e muito triste!

Aprendi com essas incríveis criaturas anônimas que o ser humano pouco conhece sobre o seu próprio interior, e que mais crê no que vê!

Jornalista Anônima

Vivência nº 101 – Mai./Jun. 2006

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