sábado, 5 de novembro de 2011

A mulher em A.A.

A MULHER EM A.A.

Há alguns anos, bem antes de ingressar em A.A., quando as garras do alcoolismo ainda eram tênues, costumava passar num local onde havia uma placa de um Grupo.

Certo dia, até parei com vontade de conhecer, ver como funcionava e se havia horário diurno. Ao verificar que as reuniões eram à noite vi que o horário me impossibilitaria de comparecer, pois queria ir às escondidas do meu companheiro, também alcoólico, que, com certeza não concordaria em abrir mão da minha companhia, justamente no nosso horário "nobre", ou seja, aquele em que estávamos sempre rodeados de garrafas e copos num bar qualquer.

Essa desculpa, aliada ao fato de sentir vergonha, como mulher, de que alguém me visse entrando ou saindo da sala, bem como dos que lá se encontrassem me reconhecessem e saírem me apontando, me levaram a esquecer o assunto.

Além de tudo esse lampejo não se deu porque me considerasse alcoólica e precisasse de ajuda, seria apenas por curiosidade, afinal, eu bebia como todo mundo bebe; às vezes exagerava um pouquinho (diariamente), mas quem já não o fez? Eu não era alcoólica apenas queria parar de beber e ouvira dizer que em A.A. se conseguia.

Deixei que a doença seguisse me destruindo, me levando a todas aquelas perdas de que tanto ouvimos falar e falamos nos Grupos: da dignidade, da moral, da família, do patrimônio, da memória, etc. Do emprego não aconteceu, pois o alcoolismo se manifestou e tomou vulto após a aposentadoria. Até então - hoje eu sei - apresentava sintomas, atitudes, ações e reações típicas, mas desconhecia que tratava de doença e não percebia que estava perdendo o domínio da minha vida, ainda que mantendo o controle da situação.

Um dia, após um porre de conseqüências dramáticas, decidi que procuraria ajuda para parar de beber, eis que praticara a abstinência diversas vezes, mas sempre voltava pior, o que me provara ser inócua a tentativa de parar. Sozinha jamais conseguiria me afastar do "rei álcool", que me dominava por inteiro.

Só outra mulher pode avaliar quão sofrido é o momento de se admitir alcoólica, numa sala, onde, na maioria das vezes é só você, de mulher, os demais são homens, fazendo com que se fique receosa, constrangida e envergonhada, por mais atenciosos, gentis respeitosos e compreensivos possam se mostrar.

Mesmo assim, cheguei; disse logo que queria fazer parte; fui à cabeceira da mesa e nem por um momento sequer titubeei; já saí revelando os motivos pelos quais os procurara e me declarando, de imediato, uma alcoólica.

Obviamente meu mundo caiu ali, reconheci a derrota total. Daqueles minutos de cabeceira de mesa, não sei quantos, nem o que falei, só consigo me lembrar que a Sílvia poderosa, orgulhosa, arrogante, vaidosa ao retornar a casa teve a sensação de libertação de um peso, que não era mais capaz de carregar.

A dor da alma era muito superior a qualquer outro sentimento que pudesse aflorar. Aliás, nem espaço, nem tempo havia mais para sentimentos. Era inquestionável; eu sentia sede não mais do álcool, mas de um lenitivo, um remédio que aliviasse não me importando se seria ministrado por homens ou mulheres. Tudo o que necessitava era recobrar meus sentidos, minha vida, realinhar meus pensamentos e idéias, me reintegrar, juntar os pedacinhos que fui deixando cair pelo caminho, me adequar ao planeta, pois vivera um bom tempo, fora de órbita.

A princípio, muito timidamente fui partilhando minhas experiências; fiz a freqüência de reunião que me foi sugerida, me agarrei ao Programa de Recuperação, procurei conhecer a Literatura, prossegui num Grupo onde havia poucas companheiras, as quais também não iam com muita assiduidade às reuniões. Na maioria dos dias, só havia eu de mulher na reunião, no meio da companheirada masculina. Confesso: não desisti, porque meu companheiro alcoólico, que também ingressara, me acompanhava todos os dias.

Ao ler o livro Alcoólicos Anônimos, Capítulo VIII, às Esposas, me identifiquei muito com o que ali se encontrava escrito. Convivendo com um alcoólico, eu havia passado por todas aquelas situações. Entrou em ação a Sílvia manipuladora. Baixou a autopiedade, comecei a achar que somente ele era alcoólico, meu algoz, causador de todos os meus problemas. Igualzinho à época em que bebia me transformei em vítima. Ele me fazia beber, e eu só bebia para poder agüentar a vida com ele, me fiz acreditar que A.A. não era meu lugar, que deveria procurar Al-Anon.

Dessa forma, totalmente insana conversei com meu padrinho e outro companheiro dizendo-lhes das minhas conclusões, ao que fosse, mas que, pelo que eu já havia dito em cabeceira de mesa, minhas características eram de alcoólica para não admitir minha impotência e poder julgar o outro. Não preciso dizer que fiquei muitíssimo aborrecida, revoltada até; não aceitei tais considerações, mas também não fui, permaneci em A.A., até que a mente se abriu. Concluí que a co-dependência existe, mas que no nosso caso, éramos ambos alcoólicos, necessitávamos da companhia um do outro para beber, brigar, discutir, acusar um ao outro etc.

Quanto às companheiras, muito criticadas, pela pouca freqüência, não prestarem serviço, depoimentos julgados superficiais, pelo desconhecimento e falta de interesse pela Literatura, na época, também acreditava poderem dar um pouco mais de si ao Grupo e à Irmandade. Hoje, posso entender melhor os motivos que levam ao afastamento das companheiras.

Aos 3 meses, comecei a prestar serviço fazendo café, lavando toalhas, varrendo a sala, coordenando reunião, secretariando; servir foi meu bálsamo final. Comecei a freqüentar como MI (membro interessado) as reuniões de Distrito, ESL, Área, a participar de eventos, daí a servidora no Distrito. O Serviço é a pedra de toque da minha recuperação. Assim como no Grupo, os Órgãos de Serviço também se ressentem da falta de companheiras, o que não significa que não sejam gratas ou não tenham boa vontade.

Nós mulheres AAs, assim como alguns homens, não dependemos somente da nossa boa vontade; precisamos atender às necessidades de cônjuges, filhos, netos etc. os quais nem sempre compreendem a importância do Serviço na Irmandade, que, periodicamente nos afasta do convívio familiar. Familiares, que, em sua maioria, muito sofreram e se distanciaram de nós, ou dos quais nós é que nos distanciamos. É como se fosse uma recompensa. Eu me culpo... eles me cobram...

Posso me considerar uma felizarda. Aposentada, disponho de algum tempo para me dedicar, gosto e preciso; faço com amor quando solicitada. Minha experiência profissional me permite colaborar em diversas atividades. Para mim, é gratificante e salutar, não sobra tempo para lembrar-me que um dia vivi embriagada. É tudo de bom!

Não pensem que vivo num mar de rosas. Meu companheiro, também em recuperação, que conhece o Programa, mas não está dentro do Serviço muitas vezes não entende minhas ausências, quer mais atenção, cria dificuldades, implicâncias, cobranças, controles. Imaginamos como devem ser cercadas as companheiras que convivem com pessoas de fora da Irmandade. Venho aprendendo que tudo passa. É o que eu pratico, deixo passar.

Prossigo na minha recuperação individual, personalíssima; procuro evitar desavenças nas quais o motivo seja gerado por atividades que desenvolvo na Irmandade. Eu mesma me imponho limites, me conscientizo de que há eventos dos quais não posso participar (por mim estaria em todos) e encargos que por ora não posso exercer. Um dia, quem sabe?

Sigo na minha meta que é a sobriedade e reformulação de vida. Não permito que questões tão pequenas diante da grandiosidade de nosso objetivo primordial venham me abalar me afastando da Irmandade. Este tema é rico de abordagens e cada um de nós deve ter passado por várias outras experiências, cujo relato seria muito importante conhecer.

Infinitas 24 horas.

Sílvia/Niterói/RJ

Vivencia 110 Nov/dez.2007

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