domingo, 8 de abril de 2012

Quarta Tradição

QUARTA TRADIÇÃO

(Artigo de autoria de B.L., Manhattan, N.Y., publicado na revista mexicana "EI Mensaje" de julho de 1974, com permissão de A.A. Grapevine, onde foi publicado originalmente)

"Cada grupo deve ser autônomo, exceto em assuntos que afetem a outros grupos ou aos A. As. considerados como um todo."

Durante meu primeiro ano em A.A., soube que um grupo de outra cidade tinha o costume de entregar fichas de pôquer aos membros que conseguiam permanecer abstêmio durante diversos períodos de tempo. E chegavam ao cúmulo de oferecer uma grande festa ao celebrar o primeiro aniversário de um membro, com bolo e inclusive apagamento de vela ao som do `Parabéns pra você.
Aquilo me aterrorizou. Escandalizou-me. Declarei que uma conduta tão infantil levava as pessoas a permanecerem abstêmias unicamente pelo afã da recompensa, em vez de fazê-lo pela sobriedade e a própria vida do indivíduo. Ademais, violava claramente o plano das 24 horas, através do qual se pretende permanecer sem beber por apenas um dia, em lugar de fazê-lo por meses ou anos. Balancei horrorizado minha cabeça e disse pra mim mesmo: `Deve fazer-se algo a respeito!.
Algum tempo após esse acontecimento, um orador na reunião narrou várias passagens em alto tom de voz (tal como muitos `alcoólicos reformados eu me tornara muito rígido) e, também, confessou que estivera bebendo no dia anterior e isso foi demasiadamente ofensivo para tolerar, claro. Fui diretamente ao membro antigo que já me havia escutado pacientemente na vez anterior e disse: `Devemos fazer alguma coisa quanto a isso! `Bern, então faça-o você, respondeu-me sorrindo e sem nada mais dizer, afastou-se. (Naquela época, 1945, as Doze Tradições ainda não haviam sido escritas).
Muito pouco tempo após, pude observar através da Revista Grapevine que em Chicago, Mineapolis, Saint Louis e Miami haviam muitos grupos que estavam `fazendo mal as coisas, o que significava certamente que não as faziam da mesma forma que habitualmente meu grupo fazia.
E, não obstante, aqueles distantes e meus desconhecidos companheiros de A.A. pareciam ter uma sobriedade tão boa quanto àquela que nós tínhamos em nosso grupo. Além do mais, com suas festas de aniversário e seus regalos de comemoração pareciam ter uma alegria e uma diversão dos quais meu grupo carecia completamente.
O pior de tudo é que aqueles membros antigos com os quais eu comentava tais coisas não davam a mínima; simplesmente contentavam-se em permanecer sóbrio serenamente. Parecia que não lhes importava que outros grupos e outras pessoas fossem por caminhos diferentes do nosso. O que eu desconhecia naquela época era que aquelas pessoas antigas haviam se dado conta de algo muito importante: que perder a calma por causa de outros grupos ou membros era muito perigoso para os que se incomodavam.
E a razão por trás disso era que se eu não colaborasse para que os demais tivessem autonomia, a pessoa mais próxima de uma bebedeira seria EU. De modo que finalmente tive que aprender, uma vez mais, que não pode haver chefes em A.A. (tal como estabelece a Segunda Tradição), e que de nenhum modo ninguém obedecerá nenhum tipo de ordem. Em minha opinião, há uma guia específica adicional na forma como está escrita a Quarta Tradição: "Cada grupo deve ser autônomo, exceto em assuntos que afetem a outros grupos ou aos A.As. considerados como um todo." Eu não creio estar distorcendo o espírito destas palavras quando reflexiono que não apenas cada grupo mas também cada membro em particular merece autonomia pessoal.. E que, ademais, o respeito à independência dos outros trará vantagens para mim.
Não existisse a Quarta Tradição, seja pela experiência vivida pelos primeiros membros de A.A., seja pela forma escrita de hoje em dia, qual teria sido a minha própria história em A.A.?
Sim, durante meus primeiros meses eu A.A., se fosse obrigatória uma só maneira de fazer as coisas, talvez eu não houvesse permanecido o suficiente para recuperar-me. Se as fichas de pôquer e as festas de aniversário fossem obrigatórias em meu grupo, todos aqueles que carecíamos de sociabilidade não teríamos nos adaptado e teríamos ido embora para prosseguir bebendo, e morrer.
Por outro lado, se tais procedimentos houvessem sido explicitamente proibidos por alguma lei de A.A. (como eu gostaria que fosse), muitos de nossos membros para quem os pequenos regalos de aniversário, os bolos e as festas foram de especial importância em sua recuperação, teriam sido privados dessa ajuda para permanecer sóbrios.
Eu acredito que a Tradição da autonomia significa que qualquer ajuda é maravilhosa, seja através de uma ficha de pôquer, de uma jóia, de um livro, de uma oração, de um bolo com velinhas, de um "slogan", de uma reunião especial, de uma clinica, de um psiquiatra, de um padrinho ou de qualquer outra forma que ajude a permanecer sóbrio.
Se espera que cada um de nós chegue a obter sua própria concepção do Poder Superior, me recuso a pensar que haja alguém (algum outro membro ou comitê) ao qual esteja facultado decidir a maneira pela qual devemos fazê-lo Mais ainda: aprendi que tolerar da boca para fora a forma de procedimento dos outros não é suficiente Algo que tem contribuído muito mais em minha recuperação tem sido aprender a respeitar os valores positivos que podem ser encontrados nas diversas formas de proceder. À medida que A.A. cresce e se aproxima de seu quadragésimo aniversário, sinto que aumenta o valor e o conteúdo de nossa Quarta Tradição, porque, devido a ela, nos é facilitada evitar a rigidez que poderia destruir a utilidade de A.A. e minguar seu potencial para cada vez mais e mais receber as diversas classes de doentes alcoólicos.
Desde cedo em minha vida em A.A. tive a grande fortuna de encontrar membros que não temiam efetuar toda classe de experimento com o programa. Começaram a ensaiar tipos de reuniões das quais nunca ninguém havia ouvido falar antes: discussões fechadas, discussões abertas, reuniões de Passos determinados, etc. Alguns chegaram a persuadir a um hospital geral para abrir um pavilhão exclusivo para doentes alcoólicos, dirigidos com a colaboração do Escritório Central de A.A., e de permitir que se realizassem; reuniões dentro do recinto.
Vocês podem imaginar as tempestades causadas por tais inovações. Foram tachadas (é com "eh" mesmo) de "heresia" por muita gente que dizia que se uma forma determinada de apresentar ou de continuar o programa não havia sido usada previamente, não poderia ser utilizada, já que poderia arruinar a Alcoólicos Anônimos.
Naturalmente, muitos milhares de nós sabem muito bem agora que as diversas classes de reuniões nos dão a forma adequada de ajuda para os diferentes estados de nossa sobriedade.
Milhares entre nós têm salvado nossas vidas graças às facilidades conseguidas nos hospitais (estive internado duas vezes). Quem poderá dizer que a Quarta Tradição não pode ser aplicada também à sobriedade de um indivíduo? Desta forma me alegra o fato de que a autonomia de grupo nos dê a todos o direito de experimentar se assim desejarmos. Assim não fosse, todas as reuniões seriam idênticas, todas à mesma hora e aqueles que temos sido beneficiados com uma reunião vespertina de discussão, ou uma reunião à meia-noite sobre o Décimo Primeiro Passo, teríamos perdido coisas muito interessantes.
Há pouco tempo fui indicado de novo para o Comitê de Orientação de meu grupo. Eu já havia sido coordenador do grupo há muitos anos atrás, mas ninguém do Comitê o sabia. Gelei em minha cadeira quando aqueles jovens companheiros começaram a discutir acerca dos encarcerados aos quais se deveria oferecer para participarem das reuni de principiantes. Encarcerados!
Estremeci interiormente. Estava seguro de que não encontrariam ninguém disposto a fazê-lo. Paralelamente, as finanças do grupo não iam bem e havia o risco de despejo.
Em nossas reuniões para principiantes vemos agora tal quantidade de pessoas como nunca antes, falando tranqüilamente e sóbrios. As contribuições dos companheiros do grupo são suficientes para o pagamento das despesas, incluindo o aluguel, e ainda sobram recursos para enviar apreciáveis contribuições mensais para a lntergrupal e para o Escritório de Serviços Gerais. Graças à Quarta Tradição, meu grupo pode viver independentemente de mim e de minha rigidez. E quem pode prognosticar as maravilhosas idéias que virão se os membros como eu tivermos flexibilidade suficiente para aceitá-las e usá-las?
As palavras finais do texto desta Tradição sugerem, não obstante, que autonomia não é absoluta. Meu grupo tem o direito de reger-se da forma como bem quiser, contanto que não confunda as coisas de tal modo que prejudique a outros grupos ou lesione de alguma forma a nossa querida Associação como um todo.
Cada vez que reflexiono e reconheço o valor da autonomia de meu grupo, penso também em minha responsabilidade pessoal. Por exemplo, quando chegam ao grupo os tão importantes membros novos, qualquer coisa que eu faça ou deixe de fazer pode afetar realmente aos outros grupos. Se não sou amistoso, se sou retrógrado, ou demasiado crítico, ou dogmático, se sou frívolo, ou sem sentido de humor, o recém-chegado pode tomar estas atitudes como características de todos os A. As. Pode sair dizendo que "todos esses A.As. são fanáticos" ou "aborrecidos", ou "fúnebres", e é provável que nunca volte a esse grupo, nem a nenhum outro.
O que posso fazer a esse respeito? Antes de tudo, quando eu tiver que coordenar ou falar numa reunião aberta, ou participar de uma discussão ou reunião de informação, é muito importante para mim que estabeleça claramente que nenhum membro de A.A. pode falar por A.A. como um todo ou por nenhum grupo ou por pessoa em particular, posto que cada um que fala expressa exclusivamente sua própria opinião. Em A.A. buscamos que haja diversidade de opiniões, não uniformidade, porque desta maneira podemos ajudar a mais e mais pessoas (eu mesmo necessito recordar especialmente isto quando alguém expressa opiniões diferentes ou contrárias às minhas).
Porém, não estou seguro de que sejam totalmente efetivas tais notificações. Em realidade, como membro de A.A. há muito poucas coisas que não se reflitam em meu grupo ou nos A.As. considerados como um todo, ainda que eu não deseje que seja assim. Para o mundo não somos o A.A., e isto constitui uma terrível! responsabilidade. Certa ocasião dirigi-me a um colega de trabalho - não membro de A.A. - de forma muito incisiva; azedamente replicou: "Vocês, os A.As., são todos estupidamente rígidos". Considerando que eu era o único A.A. que ele conhecia, eu representava para ele toda a nossa Irmandade.
Minha liberdade como A.A. para fazer ou dizer o que quer que me cause prazer, deve, então, ser vigiada muito cuidadosamente.
Ao nível de grupo. a autonomia total que se pratica e se defende tão zelosamente traz consigo um sério perigo para a nossa comunidade, ou pelo menos, uma desvantagem que devemos tratar de corrigir constante e engenhosamente. Quero com isto dizer que em certas ocasiões à mesma autonomia pode obstaculizar em algum grau o livre intercâmbio de experiências.
Se tivéssemos a férrea organização hierárquica que tem a maioria das organizações, a informação útil poderia ser transmitida da melhor forma e mais rapidamente. Se tivéssemos alguma forma de autoridade poder-se-ia transmitir forçosamente as idéias até o último dos membros. As notícias de um novo folheto poderiam disseminar-se por meio dos superiores hierárquicos a todos os subordinados. Os resultados dos ensaios de novos tipos de reuniões seriam transmitidos automaticamente a todos os grupos e membros.
Tal como são as coisas, agora, há muitos milhares de membros que se privam de conhecimentos que poderiam usar de forma construtiva. Por exemplo, menos da metade dos grupos de A.A. no mundo recebem a Revista Grapevine. E pelo simples fato de que cada um deles é totalmente autônomo, não se pode obrigar que tomem conhecimento da existência dessa maravilhosa (pelo menos para mim) publicação. Constantemente me surpreende, à medida que conheço novos grupos, que muitos deles não tenham ouvido falar ainda do novo livro de Bill "Caminho de Vida" ("Na Opinião do Bill"); alguns não têm a menor idéia do evento de 3 à 5 de julho deste ano em Denver.; em alguns jamais se mencionou algo sobre as Doze Tradições, e escassamente se fala sobre os Passos; e na reunião em que estive na noite passada, encontrei um jovem que estava em A.A. há quase treis anos quando alguém lhe perguntou: "Você tem praticado os Passos? A mim me serviram muito."
Este parece ser um preço demasiadamente alto é pesado, para r dizer perigoso, que A.A. deve pagar por conservar a autonomia dos grupos. Valem a pena tantos riscos? Eu creio que a resposta é que sim, considerando que a alternativa seria uma disciplina uniforme, rígida e doutrinal imposta sobre todos os grupos e membros. Essa alternativa ameaça minha sobriedade, muito perigosamente.
Em vez disso, gozo de plena liberdade para prosseguir aprendendo e melhorando em meu próprio ritmo, ou de permanecer estancado, se assim me parece legal. A Quarta Tradição oferece verdadeira independência a mim pessoalmente e a cada um dos grupos sempre e quando se aceite a responsabilidade que coadjuva. Mas isso não me preocupa. Quem disse que a liberdade se adquire gratuitamente?
TÓPICOS PARA REUNIÃO FECHADA NESTA EDIÇÃO:
INVENTÁRIO DA QUARTA TRADIÇÃO

1. lnsísto que só há algumas formas corretas de se fazer às coisas em A.A.?
2. O meu grupo sempre leva em consideração o bem-estar do resto de A.A.? Dos grupos próximos? Dos solitários do Alasca? Dos que estão distantes em auto-mar? De qualquer grupo em qualquer lugar distante?
3. Reprimo a conduta de outros membros quando é diferente da minha, ou me serve de lição?
4, Tenho sempre em mente que, para aqueles que estão fora de A.A. e que sabem que sou um A.A. até certo grau posso representar a imagem daquilo que é a nossa Irmandade?
5. Estou disposto à ajudar a um recém chegado para que tome todas as medidas - as suas, não as minhas - para permanecer sóbrio?
6. Compartilho meu conhecimento das ferramentas de A.A. com outros membros que não as conhecem?

B.L., Manhattan, N.Y.

Tradução: Edson H.

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