terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Desocupando o espírito

Desocupando o espírito

Que o ressentimento seja para mim, alcoólico, o inimigo " número 1", é uma das maiores revelações que tive em A.A. Senti realmente a esperança de libertação no dia em que li o Décimo Passo, que diz a nós, alcoólicos, que não podemos nos permitir ter raiva justificada.

Antes de conhecer A.A., tinha consciência de que uma das atividades principais do meu espírito era mastigar continuamente os mesmos ressentimentos e fazer o que eu chamo de teorías sobre os porquês desses ressentimentos. Meu espírito estava permanentemente ocupado com temas globais sobre a sociedade.

Outro de meus temas prediletos era o funcionamento do local onde trabalho, o que servia como justificativa para as minhas falhas profissionais. Tinha consciência de que eu era desonesto a respeito desses ressentimentos. Isso porque, com o pretexto dos pensamentos e discursos sobre grandes temas, somente falava de mim mesmo, de minha vida e de minha raiva.

Antigamente eu ouvia dizer que, quando se mostra o desenho de um leão a uma criança, e se lhe pedimos que nos conte uma história a respeito do leão, ela acaba contando sua própria história pessoal. Eu era como essa criança, sempre contava a história do leão, ou seja, a fachada do meu mau humor.

Também passava o meu tempo acusando os outros de fazerem a mesma coisa, em particular com os colegas de trabalho. Meu espírito estava o tempo todo ocupado, fofocando teorias sobre a maneira de pensar dos outros, para "atingi-los". Eu sabia que contava a história do leão, mas estava convencido de que minhas teorias eram válidas, só comprava jornais informativos com os quais não concordava para com elas discutir.

Também havia desonestidade de minha parte, pelo fato de me ocupar sempre de coisas com as quais não tinha nenhum contato direto.

No começo de minha abstinência, fui libertado de tudo isso. Não sentia mais a pressão interna, tinha tanto a sensação de progredir, de viver, que essa eram as coisas que vinham até mim.

E mais tarde voltou tudo. Voltei a mastigar os mesmos ressentimentos e tinha o espírito novamente ocupado com essas coisas.

Recomecei a discutir apaixonadamente com meus colegas, a julgar as pessoas e a a fabricar teorias. Mas, desconfiado de que tudo isso é muito pernicioso e totalmente contrário ao programa, comecei a falar com meu padrinho.

Agora, tento não discutir assuntos potencialmente litigiosos com meus colegas, procuro ser positivo e não mais julgar ou criticar. Sei muito bem que meu chefe tem uma boa opinião de mim quando trabalho bem, e uma má quando acontece o contrário.

Meu padrinho disse que minha capacidade de fabricar teorias bem coerentes era um defeito, e não uma qualidade como eu sempre acreditei, e que tenho tudo para aprender. Isso me permitiu ficar cético no que diz respeito às teorias, e compreender que existe amor no mundo.

Tento ter uma nova experiência, que é viver na minha realidade, com as pessoas que estão à minha volta, os membros de A.A., meus colegas e minha família. Tento (com certo sucesso) viver bem, evitando alimentar as minhas obsessões, assim, evito comprar jornais informativos e escutar as informações no rádio.

Uma coisa que com certeza não faço suficientemente, é compartilhar quando uma obsessão me persegue.

Com os membros de A.A. compreendo melhor até que ponto esse modo de funcionar através de teorias é nocivo, e o quanto há de orgulho e desonestidade por trás disso. Também tenho uma coisa muito difícil para mim: quando sei, graças aos ensinamentos de A.A., que um comportamento é ruim para mim ou algo me deixa mal, e quando quero evitar continuar com aquilo, procuro agir de forma concreta para tentar mudar minha cabeça. Quando estou enfrentando uma obsessão, pelo simples fato de pensar em outra coisa e de compartilhar, constato que meu espírito fica bem menos ocupado com tudo isso e que vivo bem melhor, mesmo se na verdade esses ressentimentos permanecem em grande parte vivos e presentes.

(Revista Partage,1999)

(Vivência - Jul/Ago 2000)

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