quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Décima Segunda Tradição

" DÉCIMA SEGUNDA TRADIÇÃO "

Por B.L., Manhattan, NY.

"O anonimato é a base espiritual de todas as nossas Tradições, lembrando-nos sempre que devemos antepor os princípios às pessoas".

"As Doze Tradições de A.A. têm sido freqüentemente para mim algo vital para manter-me sóbrio, e sempre uma ajuda poderosa em todos os meus assuntos".

Com muita freqüência, devo perguntar a mim mesmo, "Quem pensas que és, na tua maneira de ser?" A pergunta me amarra ao poste orientador que é a nossa Duodécima Tradição, assim como uma forte corda amarra uma mula teimosa. Quando me encontro agarrado a este poste, vejo-me reprimido para vagabundear em territórios perigosos da vaidade e da autocompaixão. Estas duas condições parecem atrair-me e procuram alimentar meu ego oferecendo com sua forragem sempre verde a possibilidade de cair em alguma das duas tentações que poderia me conduzir de volta à bebida.
Examinando bem esta Tradição, procuro entender seu profundo significado pela lógica ou por alguma outra rota e uma e outra vez me tenho sentido aliviado face à descoberta de que aqui, neste contexto, a palavra "anonimato" tem um significado simples, que pode ser por mim utilizado.
Os periódicos e as revistas, a televisão e o rádio, muito raramente encontram em alguns de nós algo em particular que justifique o interesse do público em saber se estamos sóbrios ou não. Mas, quando tal acontece, a Undécima Tradição amplamente oferece cobertura à situação, segundo creio. (Nunca houve, por certo, a pretensão de que nos abstivéssemos de revelar nossa afiliação a A.A. quando de forma privada.)
Porém aqui na Duodécima Tradição, a palavra "anonimato" sugere expressamente algo muito maior que isso, algo que está no coração de todos os ensinamentos de A.A. Hoje em dia, até onde posso compreender, esse algo é a humildade.
A palavra humildade tem sido, em minha visão, ao mesmo tempo, algo temível e digno de respeito dentro de A.A. No início, além de 1945, pensei no desprezível, choramingado, indigno, falso de Uriah Heep, o personagem de Dickens. Eu não tinha qualquer dúvida de que essa não era a humildade que A.A. queria exprimir.
Em seguida, a palavra me sugeriu a sensação de estar humilhado. Pareceu-me muito difícil entender como e porque isso me ajudaria a permanecer sóbrio. A humilhação havia sido uma das partes mais penosas do meu alcoolismo. Como é que A.A. queria que eu tolerasse mais humilhações, porém sóbrio?
Foi um grande alívio, durante esse primeiro ano, escutar conversas sobre humildade, durante horas e horas, sobre xícaras de café que consumíamos em grande quantidade na cafeteria da Grand Central Station. E eu disse para mim mesmo que humildade não quer dizer abjeção, nem significa desvalorização; pelo contrário, era a significação de um bom propósito.
Posteriormente, ao investigar idéias religiosas com a orientação de meus companheiros de A.A., encontrei uma enorme ajuda através de explicação de Emmet Fox. Ele diz que humildade não significa ser pobre de espírito nem deixar de ter idéias próprias. Ao revés, isto quer dizer estar disposto a aprender o que nos ensinarem.
Depois de uma recaída que tive em 1946, acreditei pôr em prática um passo maior para a compreensão da humildade quando decidi me empenhar no aprendizado do desinteresse. Para mim, isto significava praticá-lo, mas pôr-me em movimento muitas vezes, como se fosse um exercício, necessário para alguém que se vira perdido na autocompaixão e na preocupação vaidosa de si mesmo. Tive que encontrar pequenas coisas que eu pudesse fazer em benefício de alguma pessoa.
Logo, tive que me manter calado com referência a estas iniciativas, em vez de procurar cobrar qualquer crédito por eles.
Isso nem sempre foi fácil, posto que me sentia convencido de que aquilo que fazia não tinha nada de fácil. Deveria ter algum custo, ainda que mínimo, ainda que não fosse mais do que o meu tempo na busca do progresso espiritual. Para o meu propósito, vi que eram melhores as tarefas menores — tais como lavar os cinzeiros em meu grupo. O ponto era, segundo a minha visão, que para a minha própria sobrevivência tinha que aprender a colocar o bem-estar dos outros antes do meu próprio bem-estar, e aprender a fazê-lo assim sem a recompensa do elogio dos demais.
(Tais exercícios são ainda úteis para mim quando me vejo desejando um crédito que não obtenho, tanto dentro quanto fora de A.A. E tenho também o mal hábito de contradizer. Cada vez que aprendo esta lição, tenho que lembrar a mim mesmo à necessidade de ser generoso para dar o crédito quando realmente ele é merecido. Às vezes sou mais pródigo na críticas do que nos elogios, infortunadamente).
Pensei que estava começando a captar o significado da humildade em ação. Então, numa manhã, quase ao meio-dia, antes do almoço, meu chefe entrou repentinamente no escritório e entregando-me algumas folhas escritas e me ordenou: "Tire cópia de todos estes escritos", e se retirou.
A ira me paralisou totalmente. Senti-me tão ofendido quanto se ele houvesse me mandado varrer o escritório. Quem ele pensava que eu era? Por que me ordenou fazê-lo, em vez de dar o serviço para uma secretária? Por que eu, em vez de um auxiliar do escritório? Senti-me tão irado que perdi a capacidade de pensar — simplesmente me dediquei a sentir.
Finalmente, fui para a máquina copiadora, assegurando-me de que Tom, meu chefe, me visse. Também me assegurei de que me escutasse dizer em voz alta: "Não vou poder ir almoçar, porque tenho que fazer este trabalho". Pobrezinho, eu!
Quando comecei a passar aquelas folhas pela máquina — operação que não tomou mais de dois minutos — tratei de me refrear um pouco e olhar para o meu interior, um truque que meu bom psiquiatra me havia ensinado a praticar quando me sentisse com a cara roxa, O que vi foi uni homem de quarenta anos, arrogante e pomposo, fazendo a pirraça de uma criança de quatro anos. Vi-me tão ridículo que comecei a rir de mim mesmo, e a respirar novamente. Não fazia muitos anos, era um bêbado, um vagabundo a quem ninguém podia dar-lhe trabalho. E agora me havia convertido num "grande personagem" que pensava que era demasiado importante para realizar uma simples tarefa mecânica. Realmente, quem estava eu pensando que era?
Já sem estar enceguecido pela minha própria vaidade agravada, lembrei de algo mais que havia esquecido temporalmente. O velho Tom era um bêbado. Com isto quero dizer que se tratava de um bêbado miserável, temeroso, trêmulo, suarento, que bebia o dia todo, mas procurava ocultar. As pessoas riam de seu esforço se perfumando, da dificuldade de fazer a barba, cortando-se, da garrafa que mantinha guardada por trás dos livros, de seus demorados almoços depois dos quais ficavam reduzidos seus tremores matinais.
Eu já havia falado muito sobre as minhas bebedeiras no passado para que se apercebesse de que éramos totalmente afins em nosso interior. (Inclusive procurei manobrá-lo para que me perguntasse a maneira pela qual eu podia permanecer sóbrio). Por isso, quando repentinamente pensei naquelas lastimosas sempre tremendo, senti vergonha de mim mesmo. Obviamente, antes do almoço, ele não podia colocar essas páginas na máquina copiadora posto que sequer podia segurar um lápis.
Simplesmente havia necessitado de um favor de um amigo em quem podia confiar, e eu penso que era tal amigo. Entretanto, eu estava tão orgulhoso de mim mesmo e de minha posição na Companhia que esquecera por completo das necessidades e dos problemas que ele tinha.
Realmente eu não estava colocando "os princípios acima das personalidades". Em meu profundo romance com a mais fascinante personalidade do mundo (comigo mesmo, certamente) havia deixado por um momento de ter em conta um princípio básico de A.A., que é nos preocuparmos com o alcoólico que ainda sofre. Senti-me tão miserável que o convidei para almoçar em seu bar favorito, um local tenebroso e escondido, e lhe dei quatro ou cinco martinis duplos, enquanto eu consumia biscoitos e gingerale.
Durante várias semanas, senti-me naufragar no lodo do sentimento de culpa, tomado pela convicção de que eu era o pior de todos os membros de A.A. Praticamente, comecei a proclamar com orgulho minha preeminência na vergonha e no fracasso. Foi quando um companheiro muito querido em A.A. observou que alguns de nós faríamos qualquer coisa objetivando obter distinção.
Profundamente comovido, comecei a meditar. Algo começou a acalmar-se dentro de mim. E pouco depois, pude ridicularizar essa furna de desespero, tanto quanto havia conseguido rir de mim mesmo quanto à caverna de minha autocompaixão. Sempre, desde os extremos da autoexaltação e da humilhação daqueles dias, faz já quinze anos, tenho estado buscando um meio-termo entre os dois extremos. Sei que existe a humildade genuína, da qual se encontra ausente o falso orgulho, mas que tem presente o auto-respeito, porque isto tem sido demonstrado por muitos membros de A.A. através dos quais tenho aprendido os princípios de Alcoólicos Anônimos.
Acredito que também tenho captado algumas idéias dessa humildade ao escrever sobre as nossas Tradições (e espero que vocês a arrolem em sua lista do inventário).
Se alguém daqueles que lêem a Grapevine desejar compartilhar sua maneira diferente de ver as nossas Tradições, eu serei o primeiro a alegrar-me quando a ler. Depois de tudo, a compreensão das nossas Tradições é semelhante a permanecer sóbrio; não tenho qualquer mérito em fazê-lo, pelo menos enquanto estiver em A.A.
Quem creio que eu sou, depois de tudo?

B.L.,Manhattan, NY.

(Este artigo foi publicado originalmente na Revista Grapevine e republicado na Revista "EL MENSAJE" de agosto de 1977)

Tradução: Edson H.

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