domingo, 22 de maio de 2011

Que A.A. sou eu?


Se eu fosse um membro de A.A. com cerca de dois anos sem beber e me mudasse para um outro país onde não existisse Alcoólicos Anônimos, o que eu faria?

Eu teria feito algum tipo de trabalho para iniciar um Grupo nesse país? Eu teria trabalhado incansavelmente por cerca de três anos, sem desanimar, fazendo abordagens, promovendo reuniões, pedindo ajuda para o escritório de outro país, procurando jornais, rádios, traduzindo e editando livretos? Tudo isso tendo ainda que cuidar da própria vida, da família e trabalhar para viver?

Eu teria feito tudo isso? De maneira tão firme que hoje, neste ano de 1997, a Irmandade estivesse completando cinquenta anos de existência com cerca de sete mil grupos e uma estrutura de serviços formada?

Não. Provavelmente eu teria bebido. Como é que eu iria frequentar reuniões num país estranho, se nem um Grupo havia? Não sei se estou sendo injusto ou excessivamente impiedoso comigo mesmo, mas o fato é que fiquei curioso a meu próprio respeito. Nesse ano de 1997, em que só se fala do cinquentenário de A.A. no Brasil, vale a pena uma introspecção, uma olhada para dentro de mim, a partir de um fato concreto.

O fato concreto é que um dia, no ano de 1946, um sujeito chamado Herb D. chegou ao Brasil, mais precisamente ao Rio de Janeiro, para morar e exercer seu ofício. Era um membro de A.A. nos Estados Unidos, com cerca de dois anos de sobriedade. Ao tentar participar de uma reunião, descobriu que não havia A.A. em lugar nenhum daquele país. Qual foi sua reação? Foi aquela descrita no início deste artigo. Durante cerca de três anos, junto com os que começaram a chegar, lutou o tempo todo até que, ao ir embroa, deixou o embrião da Irmandade em nosso país, ou seja, um Grupo funcionando regularmente.

Com dois anos de A.A., eu já havia me casado pela segunda vez, e era muito apegado ao meu lar. Com muito favor, ia as duas únicas reuniões semanais de meu Grupo, prática que facilmente podia reduzir-se a uma vez por semana, dependendo de outros compromissos. Durante aqueles primeiros anos, prestei alguns poucos serviços. Nada muito estafante... Coordenei reuniões durante algum tempo e também instalava a sala. Quem coordenava naquele tempo também tinha que instalar e desinstalar o Grupo. É que se situava numa sala dos fundos de uma igreja, onde além de A.A., se desenvolviam várias outras atividades da comunidade. O nosso Grupo, mesmo, quando não estava tendo reunião, ficava localizado dentro de duas caixas de madeira em cima de um armário velho. Quem ia coordenar chegava uma hora antes, varria a sala, abria as caixas e instalava o Grupo. Arrumava a mesa com a toalha, os livros, a campainha, o relógio, a sacola, pendurava na parede os Passos, as Tradiçoes, a Oração e diversas frases, inclusive o desenho meio gasto de uma tartaruga, com o lema “Vá com calma”, escrito em cima.

Certa vez, fui eleito RSG. Antes de me candidatar, fui perguntar a um veterano o que fazia o RSG. Ele me respondeu que o RSG servia para eleger o Delegado, o que acontecia uma vez por ano (o que não deixava de ser verdade, já que naquela época não havia ainda estrutura de serviços). Fiquei bastante animado com o encargo. Uma reunião por ano, eu podia fazer esse sacrifício. (Hoje em dia, já velho mentor – pelo menos eu gostaria – de vez em quando me pego no pulo dizendo para os mais jovens: “Com dois anos de A.A., eu já trabalhava como RSG.”)

Quando o Grupo passou a ter reuniões diárias, fiquei confuso. Entendam, com duas semanais, se eu faltasse uma reunião por semana, ainda assim eu estaria participando de cinquenta por cento das atividades do Grupo. Reunião todo dia complicou. Assim, mudei de Grupo.

Foi espantosa a paciência e a tolerância que meus padrinhos sempre tiveram comigo. Ambos foram e ainda são muito ativos no A.A. Uma ocasião, em períodos sucessivos, os dois se elegeram para encargos no escritório local e prestaram serviços marcantes. Eu apoiei entusiasticamente essas iniciativas, porém fiquei de fora. “Eu preferia ser anônimo servidor de Grupo”, dizia para mim mesmo. Muitas vezes eles e outros bons servidores vieram jantar em minha casa e tivemos reuniões memoráveis até o último trem de metrô, com assuntos intermináveis, recheados de muitas risadas. Eu participava de todos os assuntos, dava palpites de como administrar bem o escritório, mas nunca fui lá. Eles também, “macacos velhos”, não ficavam me convidando. Limitavam-se a fazer a parte deles, a dar o exemplo. Nessa época, eu andava querendo posar de velho mentor no Grupo onde ia uma vez por semana, ou seja, recusando-me a candidatura em encargos “para dar espaço aos mais novos”.

Aproximando-me de uma década de um programa meio titubeante, a Providência interveio. Na verdade, eu me sentia atraído pelo exemplo de meus padrinhos, mas eu me continha com o argumento de que não tinha tempo. Pois bem, de repente aconteceu de me sobrar todo o tempo do mundo. Tive que fazer uma cirurgia na minha perna esquerda, velha amiga que dá um trabalho extra desde uma longínqua madrugada em que se misturaram uma vasta bebedeira, um carro emprestado e um poste. O fato é que entrei em uma prolongada licença.

Um dia, após ler todos os livros que tinha em casa, perguntei ao meu padrinho se havia algo para fazer no ESG onde ele estava com um encargo. Ele, meio distraído e sem acreditar muito no que estava ouvindo, me disse que sim, que havia lá muita coisa para fazer, especialmente cartas que estavam se acumulando. O fato é que comecei a ir. Naquela época, havia algumas novidades. Estava saindo o primeiro número do Bob Mural, formava-se o primeiro Comitê de Literatura, falava-se que dali a alguns anos a Vivência deveria vir para São Paulo, sede da JUNAAB.

Comecei a gostar das pessoas e do que fazia. E continuo indo lá até hoje. Prestei alguns serviços e tenho tido alguns poucos encargos. Nada muito estafante, repito. Ou que não gostasse de fazer. Sou daqueles que escolhem o que fazer. Na dúvida, eu falo não. Se me convidarem para ser tesoureiro de meu Grupo, é bem capaz que eu suma do mapa. No duro no duro, acho que o meu sonho mesmo é ter de volta aquele meu encargo de RSG dos meus dois anos deA.A.. Aquele em que só precisava ir a uma reunião por ano.

Ultimamente ando pensando em me aposentar de A.A. Como diz um companheiro mais antigo que se afastou recentemente, “não vou fazer mais nada, só ir as reuniões do meu Grupo, me sentar na última fileira como um velho resmungão e passar o tempo todo pigarreando com ar reprovador”.

Na verdade, dando um balanço final, fiz muito pouco – nem de longe fiz o que poderia chamar de “a minha parte”. Recebi de A.A. uma nova vida quando tudo estava perdido. A maior parte do tempo eu me esqueço disso.

O que eu faria se, membro da Irmandade há dois anos, chegasse para morar num país estranho e lá não tivesse A.A.? Provavelmente eu teria bebido.

E você companheiro?

Vivência 46 – Mar/Abr 97

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