Da ilusão da potência num boteco à visão da impotência num hospital, veio o Primeiro Passo de mais um membro de A.A.
Era sábado. Sei disso porque era dia de feira na pracinha do bairro. Amanhecera chuviscoso e tinha tudo para ser um dia "Colonial" - como nós, biritas, chamávamos um dia bom para encher a cara. Tudo ia dando certo, levantei-me com o dia ainda escuro, peguei a cesta da feira e saí.
Só tinha uns probleminhas: o dinheiro como sempre fraco, a tremedeira de 'salgar toicim' e aquele azedume por dentro e por fora, sem falar na piada da mulher, que enchia o saco, dizendo: "Vamos ver se dessa vez tu ficas por lá, seu irresponsável!
Quando cheguei ao bar pensando ser o primeiro a 'bater o centro', já encontrei dois de cara cheia, que tinham virado a noite por aí, no pé do balcão, e escutei a velha saudação: "Como é que é, cara? Vai ficar aí olhando pro tempo, esperando por quem não ficou de vir? Toma 'umazinha' aí!" E 'pau no burro'! Eu, para não perder a parada, dizia (mentindo): "Que é isso, meu filho, eu vim lá de baixo e essa já é bem a terceira!" E com chave-de-ferro segurava na mão pra me garantir. Engolia tudo de uma vez sem fazer careta e rezando para a pinga não voltar. Apertei tanto a boca que saiu água pelos olhos. Senti a bicha passar queimando, o suor frio descer na
espinha. O sinal de que 'ela' tinha chegado no estômago foi a quentura nas orelhas.
Quando eu já ia saindo, o cão chega, era Suvela trazendo um prato de panelada e foi logo puxando a corda: "Vai abrindo?" Eu disse: "Nunca!". E com o resto do dinheiro pedi logo uma 'meiota' em comemoração ao tira-gosto. E que saideira foi essa que, quando dei por mim, já estava melado e sentindo uma tontura diferente. A vista escureceu e daí só acordei no Setor de
Emergência do Hospital Walter Cantídio, vestido num camisolão e todo furado de agulha de injeção nos braços, com uma secura horrível que dava uma vontade de beber água e urinar ao mesmo tempo.
Foi quando ouvi uma conversa baixa, talvez para não incomodar (os doentes): uma enfermeira falando para o médico plantonista, "Doutor, o velhinho aí passou mal, chegou aqui todo roxo e quase sem respirar, nós entramos com oxigênio e soro. Acho que dessa vez ele escapa". Ouvindo isso, mexi-me bem devagar e, cuidadosamente, olhei para um lado e para o outro. Não vi nenhum velhinho ali, e fiquei apavorado quando o médico bateu de leve no meu ombro e disse: "Como é, meu VELHO, está melhor?" Meu Deus, o 'velhinho' era EU! Eu só tinha 44 anos e queria ser novo! Não queria acreditar, era demais aquilo, e deu­-me uma raiva tão grande que tive vontade de sair correndo do hospital, bancando o doido, entrar no primeiro bar que encontrasse e engolir um copo cheio de cachaça. Mas não sei não, acho que foi Deus quem me fez respirar e pensar. E disse a mim mesmo: "Estou derrotado, estou acabado..." Veio uma vontade de chorar e ali mesmo virei o rosto e abri o eco, e a crise de choro quase não parava mais. Isso foi bom.
À tardinha fui trazido de volta para casa, arrasado. Durante muitos dias fiquei trancado no quarto, a meditar sobre a minha vida. A tristeza foi saindo aos poucos, fortificava-
(Gadelha, CE)
VIVÊNCIA N.° 53 - MAI / JUN. DE 1998.
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