quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Choque de Honestidade

" O CHOQUE DE HONESTIDADE "
Dr. Eduardo Mascarenhas

 Certa vez fiz uma palestra para um grupo dos Alcoólicos Anônimos, extremamente qualificado, formado por membros bem afinados uns com os outros, revelando um já
extenso trabalho prévio. Uma verdadeira orquestra sinfônica anti-alcoólica. Sendo mais preciso: não se tratava de nada anti-alcoólico, até porque os Alcoólicos Anônimos não combatem ou defendem causas. Melhor dizendo, era uma orquestra que inspirava emoções serenas e atitudes sóbrias.

Presidindo a reunião estava um rapaz simpático, desses que irradiam energias a favor e não negativas. Quando se apresentou ao grupo, disse seu nome, seu sobrenome, e declarou sua condição de alcoólatra e toxicômano. Era mais um da nova leva de "dependências cruzadas".

Na hora do debate, ergueu-se do grupo um homem negro de elegância discreta, belo e bem falante, de uns 47-50 anos. Provavelmente um típico representante do A.A. da velha guarda, um A. A. puro-sangue, sem qualquer dependência química senão do álcool. Estávamos discutindo essa região nebulosa daqueles que bebem regularmente, mas não desbragadamente, que permanecem há anos nas quatro a seis doses por dia e que, naturalmente, sem esforço não ultrapassam esse perigoso limite. Seu corpo e sua mente reagem bem a esses níveis alcoólicos e há 20 ou 30 anos não pedem mais. Pelo menos até aquele momento.

É claro que são alcoólatras, já que não podem passar sem álcool. É claro que estão numa região de perigo. Mas também é claro que os anos e as décadas passam e eles se mantêm dentro desses explosivos limites.

A discussão estava superinteressante. Eu não sabia dar respostas, mas aprendia com os depoimentos dos presentes, os quais, diga-se de passagem, entendiam empiricamente muito mais de alcoolismo do que eu. Se eu tinha experiência conceitual e teórica sobre o alcoolismo, se eu tinha experiência clínica com meus pacientes, eles tinham experiência vivida - essa matéria prima insubstituível.

A expressão "choque de honestidade" veio desse membro clássico do A.A. que, com ela, queria salientar a tendência do alcoólatra na ativa a negar sua própria condição, construindo mil argumentos e sofismas para encobrir o óbvio e que os Doze Passos representariam o inverso dessa desonestidade embriagada e embriagadora. Os Doze Passos seriam um choque de honestidade na tendência do alcoólatra a mentir para si mesmo o tempo todo.

 Essa formulação me remeteu imediatamente a apaixonadas discussões na sociedade  psicanalítica, em que alguns colegas definiam a psicanálise como a busca da  verdade, custe o que custar, doa o que doer. Por não ter seguido esse caminho - interessante, sem dúvida - a pessoa perderia o pé de si mesmo por não enfrentar a sua realidade a cada momento, preferindo as mordomias da ilusão. De ilusão em ilusão, esses marajás da mentira acabariam por alienar-se de sua própria verdade pessoa, tornando-se cada um deles um completo estranho dentro de si mesmo.

Resultado: neurose.
Fazer psicanálise, então, seria, reverter essa tendência vida-mansista, do prazer imediato da ilusão, às custas da verdade. O princípio da realidade deve substituir o princípio do prazer. É melhor ficar vermelho um minuto do que amarelo a vida inteira. É melhor sofrer a dor da verdade do momento do que extraviar-se nos labirintos da ilusão.

Quem não estaria de acordo com tais princípios?

Contudo, em nome deles, já foram perpetradas as maiores violências, as maiores barbaridades. Em nome da autenticidade já se perpetraram as maiores grosserias e faltas de educação. Jogar "verdades" na cada dos outros não só muitas vezes se revela inútil como francamente contraproducente. Quantos casais já se agrediram até o ponto de ruptura por causa dessa sincera busca da verdade e da franqueza? Quantos pais e filhos já não se desentenderam irreversivelmente por causa dessa franqueza rude? Quantos projetos profissionais já não naufragaram por causa dessa bem-intencionada vontade de ser verdadeiro?

Mais: quantas vezes não foi exaltada a verdade como virtude apenas para se controlar, vigiar e bisbilhotar melhor a vida alheia? Qual é a verdade que se esconde por trás dessa busca da verdade? Qual é a honestidade que inspira esse choque de honestidade?
Busca da verdade, choque de honestidade como palavras de ordem são ótimas; requerem, porém, mais refinadas diferenciações.

Para que dirá o paciente sua verdade ao psicanalista? Para que este, de posse dessa verdade, a acolha como uma das manifestações legítimas possíveis do ser? Para o psicanalista, de posse dessa verdade, incitar seu paciente a descrevê-la cada vez melhor, de modo a que este venha a melhor conhecê-la e saber como realizá-la? Ou, pelo contrário, para, insidiosa e escorregadiamente, condená-la a exortar o paciente a alguma cartilha de bem viver?

Essa diferenciação é fundamental, tanto para a psicanálise quanto para os grupos anônimos. Para que um grupo anônimo, um padrinho, estará prezando o "choque de honestidade"? Para fazer a pessoa tornar-se mais radical e completamente ela mesma, ou para fazê-la querer-se tornar outra pessoa que não ela mesma? Para auxiliá-la a viabilizar seus sonhos de modo eficaz, ou para renegar sua verdade e seus sonhos, em nome de um sistema de valores cuja procedência não se conhece direito? Enfim, o "choque de honestidade" está a serviço do enquadramento ou da libertação? Atua no sentido de levar o sujeito a assumir sua própria verdade ou a induzi-lo a renegar essa verdade em função de uma moralidade consensual?

Além dessas questões - decisivas -, existe ainda a questão da verdade máxima possível para cada pessoa a cada momento. Violar cadências não é sinceridade, é estupro. O fundamental não é a verdade, é a fecundidade. Dizer se isso será verdadeiro ou não, importa menos do que dizer se isso será fecundo ou não. A habilidade, o timing, o respeito pelo tempo do outro, pela cadência alheia, também fazem parte dessa busca da verdade, desse choque de honestidade.

O ser humano não é macaco de zoológico. Não está numa jaula aberta à visitação pública de suas mais íntimas intimidades. Ele requer privacidade, o direito de  não dizer tudo a ninguém, senão a sim mesmo. Não, nem a si mesmo. O choque de honestidade, a busca da verdade têm de levar em conta essa necessidade de ilusão.

Mais ainda: o que é verdade, a honestidade, a realidade, a objetividade? Será o mesmo para duas pessoas, ou até para a mesma pessoa em momentos diferentes da sua vida?

Busca da verdade, sim, choque de honestidade, sim; só que indo mais no fundo nessas idéias - força. Senão vira moralismo, catequese, narcisismo.

O Quinto Passo não pode desconsiderar essas complicações. Não é em vão que as tradições dos grupos anônimos recomendam sobriedade de opiniões: que não se radicalize em questões polêmicas e controversas.

Choque de honestidade, sim; busca da verdade, sim; mas sem perder de vista a ética suprema dos grupos anônimos: a sobriedade.

Honestidade e verdade sem sobriedade são atitudes policialescas, moralizantes, enquadradoras. Não libertam o sujeito, aprisionam-no cada vez mais. Nas honestidades" e "verdades" alheias. Dos mais fortes. Dos grandes grupos sociais que detêm os lobbies da comunicação.

Por essas e outras, não existem autoridades nos grupos anônimos. Ninguém tem opiniões autorizadas pelas leis do grupo. Ninguém pode condenar ninguém como herege ou exercer ninguém como antiCristo.

* Dr. Eduardo Mascarenhas ( Psicanalista )

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