Reduza a marcha
Fiquei surpresa ao descobrir que simplificar minha vida não significava automaticamente que eu havia desacelerado. A velocidade da vida na via expressa permeia todos os aspectos de nossa existência. Apressar-se transforma-se em hábito. Quando cheguei em A.A. ouvi frases como: "Vá devagar, mas vá", "Primeiro as primeiras coisas", "Aqui se engole urubu com pena e tudo", "É só parar de beber...", "Para ficar em A.A. tem que ser macho...". O serviço é diferente quando se é mulher?
Aí pegou. E o meu lado feminino? Será que terei de mudar de sexo? Precisava ser autêntica. Era minha última chance. Agora ou nunca mais.
Decidi pagar para ver e com o passar do tempo constatei o óbvio: as mulheres alcoólicas eram minoria e deveríamos "honrar as saias". Isso é possível numa convivência pacífica com os "homens de A.A.", pois eles também purgavam seus erros e tentavam reconquistar seus direitos.
Entrei no serviço. Comecei a mexer em "casa de marimbondo". Quem mandou? Mulher tem sempre que dar certo: boa mãe, boa filha, boa esposa, irmã legal, tia pra frente, ser bonita, magra, elegante, unhas feitas, sempre sorridente, alegre... ufa! Cansei! Onde ficam os temores, as dores, as lágrimas? Onde colocamos tudo isso? Você tem que dar certo. Mas, e a casa, os filhos, o marido, mesmo porque as reuniões de serviço sempre ou quase sempre são nos finais de semana?
Para vencer e superar tudo isso me lembrei do meu analista, quando disse: "Onde está escrito que mulher tem compromisso com o sucesso?" É mesmo, onde está lavrado o ato de disputa entre machos e fêmeas? Por que e para que temos de ser melhores?
Nada de caminharmos na frente ou atrás, que tal juntos? Se não me engano todos temos desejos, vitórias e derrotas, pois passamos por encontros e desencontros. Não somos adversário, mas legatários da mensagem de Bill W. Precisamos ser amados, precisamos pertencer. Os Doze Conceitos nos dão essa garantia. Você adquire direitos, cumprindo seus deveres. Os antigos nos alertaram sobre isso.
Hoje me sinto vitoriosa nessa sociedade eminentemente masculina, pois sofri, furei barreiras, abri portas, mas não me submeti a preconceitos ou tabus, prevalecendo a postura da servidora diante da opção: embrutecer-me ou vulgarizar-me?
Preferi usar meu bom senso, lembrando dos meus valores morais. Não mudei a posição do vento, apenas ajustei minha vela.
O mundo em A.A. não era de todo hostil e nem tão cruel.
Não precisamos provar nada a ninguém, basta ser capaz.
Foi aí que resolvi reduzir a marcha, diminuir o passo, para saber como me sentia em relação a cada coisa que fazia, tornando mais fácil o contato com meu eu interior. Vejo a espiritualidade. Correr, para quê? Falando e correndo menos, aprendi a ouvir pessoas e suas experiências, descobri que cada reunião de A.A. é uma tremenda viagem, não dá ressaca. Quando se volta dessa viagem, percebe-se que dá para desacelerar e em etapas conscientes buscar a paz e o silêncio de uma profunda serenidade.
Aos poucos, homens e mulheres constatamos que sair ou entrar nos encargos não é como estar ou não em A.A. Às vezes, dar macha a ré é conhecer melhor lideranças e habilidades. Liderança não se perde, o que se perde é a capacidade de inventariar-se, realizando projetos mal-feitos e não ter a humildade para refazê-los corretamente, tornando nossos processos prazerosos.
Atrasar o relógio, dar um tempo a si mesmo e curtir A.A., até que é bom.
Viajar só por hoje, apenas por vinte e quatro horas.
Façamos como os velhos marinheiros que sabem levar o barco bem devagar, sem jamais perder o rumo.
VIVÊNCIA nº 47, mai/jun 1997
Vivência - 87 - Jan/Fev 2004
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