sexta-feira, 8 de junho de 2012

Fale de você


FALE DE VOCÊ  
(Hugo L.)

Doença encardida, esta do alcoolismo. Doida e doída. Para estacioná-la, não posso esquecê-la. Ao contrário. Devo procurá-la, encontrá-la dentro dos outros, partilhar a dor que causa.

Por isso vou visitar, através do espelho, a mesma angústia de antes da rendição... Sentir de novo, expressa em outro, aquela agonia brutal, aquele entorpecimento, aquele ódio sem direção, aquela vontade de chutar o mundo, de brigar com Deus, de descobrir, em resumo, algum culpado para a dor corrosiva que vai matando o corpo e a alma, a segunda mais depressa que o primeiro...

É que é duro, sim... Quando se está sozinho, isolado, cercado de gente que não entende o tamanho da coisa, fica insuportável.

Aí chega alguém. Pode ser qualquer um o portador do milagre... Jovem, velho, rico, pobre, branco, negro, mestiço, analfabeto, professor, padre, médico, servente de pedreiro, casado ou solteiro, homem ou mulher. Aí acontece. Não é nada visível- talvez uma cicatriz da alma, um brilho nos olhos, sei lá - e de um jeito meio sonso, como o da gente no bar que aparece de mansinho e de repente está ali, do lado, levando uma prosa, falando das coisas.

Extraordinário como, falando de si, qualquer um de nós nos retrata... A mesma prisão, a mesma armadilha, as mesmas asas sem céu para voar. E como é importante, quando rastejamos, ver alguém que já rastejou também e calmamente fala que nós podemos - que é possível! - voltar a ficar de pé.

Mas às vezes, mesmo entre seus pares, a doença já é tão grave que o doente grita...A dependência da mente, a necessidade de se inebriar e trocar o mundo e a possibilidade da vida por um instante de entorpecimento é tão forte que ele berra todo seu medo, optando pela cegueira e pela viseira da negação.

E então, nega. Nega sua doença, nega sua dor, nega sua solidão, nega seu próprio desespero... Nega, enfim, a própria ajuda que sua alma mudamente pede.

E nós, doentes como ele, mas que aproveitamos nossa chance, temos nessa hora de nos colocar no lugar dele. Lembramo-nos de como foi com a gente, de como reagimos nas muitas oportunidades que tivemos, antes daquela em que finalmente, impulsionados pela força gravitacional de nosso fundo de poço, aceitamos a ajuda oferecida.

E é justo isso que o capítulo VII do Livro Azul nos lembra e ensina. Se ele não quiser parar de beber, não perca tempo tentando convencê-lo. Recorde como a doença fez com você, tenha paciência. Não apresse as coisas, pois assim pode fechar definitivamente as portas para salvar um irmão que sofre.

Também não imponha seu Deus, nem sua maneira de vê-lo. Cada um tem a sua, é um direito. Não tente aproximar-se dele através de um membro da família, a não ser que seja a única chance. Você sabe a maneira de nossas cabeças funcionarem: precisamos de ajuda, sim, mas de pessoas que não estejam representando nada nem ninguém que nos pressione. Já estamos pressionados demais.

Fique na sua, fale sozinho com ele, mostre como a coisa aconteceu com você. Seus sintomas, suas experiências. Conforme estiver o humor dele, ataque. Se falar de coisas sérias, cuidado para não moralizar. Se falar de coisas meio anedóticas, aquelas situações ridículas de que tantas vezes fomos protagonistas, abra espaço para que ele, descontraído, conte alguns casos seus também.

Finalmente, quando falar da Irmandade, frise nosso caráter democrático, confidencial, livre e gratuito.

Mostre como um monte de pessoas como você - não diga jamais "como ele" - conseguiu pelo nosso programa segurar a estranha condição mental que se desencadeava após o primeiro gole, simplesmente evitando-o. Fale de como o programa funcionou para você, permitindo que vivesse bem sem beber, eliminando suas angústias, dando forças para enfrentar as situações sem necessidade de recorrer ao mundo mágico do primeiro gole.

Fale de sua mudança, da auto-análise que fez de seus defeitos, de como percebeu que estava mentalmente viciado em jogar nos outros a culpa por fracassos e dificuldades que eram de sua exclusiva responsabilidade. Mostre como, lentamente, conseguiu trocar a agonia permanente que sempre o acompanhava por uma paz intermitente, que vai e volta, ficando cada vez mais tempo com você.

E, principalmente, não terá expectativas. Apenas mostre quem você é, o que permitiu sua recuperação e sua disposição de ajudar a todos que, descobrindo em si o mesmo problema, solicitarem seu auxílio.

Caso consiga trazê-lo para o grupo, acompanhe-o de perto, esclarecendo dúvidas, apoiando nos primeiros momentos de dificuldade, facilitando seu contato com a realidade dos sóbrios e dos abstêmios. Em suma, faça sua parte e deixe o resto com o Poder Superior.

E, é claro, continue sempre levando sua mensagem a outros alcoólicos, sem esperar com isso salvar todas as vidas. Não há nada melhor para assegurar nossa imunidade contra a bebida. Sua vida vai ter realmente, como diz o nosso livro, um novo sentido. Ver pessoas recuperadas, a Irmandade crescer ao nosso redor, pessoas perdidas se salvarem, faz muito, muito bem.

Um bem enorme, que nos torna ainda mais gratos e ligados aos princípios e pessoas que possibilitaram o milagre, em nós, de uma vida de permanente e - cada vez mais à serena sobriedade.

REVISTA VIVÊNCIA N°. 38 - NOVEMBRO / DEZEMBRO DE 1995 p. 39

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